HENRIQUE IV - SHAKESPEARE ( PRA QUE SERVE SHAKESPEARE? )

   Uma das coisas mais idiotas dos tempos que correm é a burrice de certas pessoas "inteligentes" que crêem na "utilidade prática" da arte. Bláaaaaah! São aqueles asnos que assistem uma série da HBO apenas e tão somente porque ela fala de algo "relevante". São os mesmos caras que fazem a glória de Michael Moore, de livros "sérios" sobre a crise moderna ou a questão "mais relevante" de agora. Esses tipinhos confundem jornalismo com arte, pensam que arte é a manchete do dia, e pior que tudo, empobrecem sua própria vida ao enxergar na existência apenas a concretude do jornal do dia, do pão quente, do último blá blá blá da aldeia. Mas também, a pobreza deles não lhes é justa?
   Essa é a questão central: cada um tem aquilo que lhe é de justo tamanho. Não adianta nada meus professores bradarem que o livro "velho sobre gente velha e morta" de Stendhal ou de Balzac tem tudo a ver com a vida de hoje. Não adianta tentar demonstrar que o velho filme de Murnau ou de Carné tem tudo a ver com aquilo que voce vive agora. Com sua visão míope de galinha de granja o tipinho inteligente nada poderá perceber. Azar dele. Eu nada tenho a ver com esse mundinho granjeiro.
   Pois pegue esta peça. Nesta bela tradução de Barbara Heliodora. Fala de uma rebelião contra um rei. E da relação de um herdeiro do trono com um gordo malandro de rua e de boteco. O galinho castrado de granja irá ler isto e nada, nada compreender. Vai ler a história de uma disputa por trono, um filho que assume seu destino e umas trapalhadas de um gordo bêbado. E só. Será incapaz de perceber que ali está nosso mundo interior de sempre, os embates entre dever e prazer, entre responsabilidade e medo, entre se deixar viver e tomar a vida nas mãos. Mais até, não sentirá a elevação da linguagem, linguagem que faz com que voce PENSE MELHOR, com mais clareza, e que faz com que esse pensar claro lhe conduza a sentimentos mais nítidos, mais definidos. Falstaff é o inglês medieval, amoral, meio ateu, que só quer se dar bem; Hal é o inglês que fará a glória da nova nação, determinado, cheio de senso de dever, orgulhoso. Um é nossa alma ansiosa e secreta, outro é nossa máscara social. Quem venceu?
   Estranho pensar que nos tempos de Shakespeare um ingresso de teatro custava o preço de um pint de cerveja preta. Era a ralé de comerciantes pobres e de soldados de segunda que assistiam a essas peças. Vibravam, uivavam, vaiavam e aplaudiam em cena. Entendiam. Dificil de acreditar que isto foi um dia diversão popular.
   Pensamos com palavras e vivemos aquilo que conseguimos pensar. Textos de lingua elevada enriquecem nosso palavreado, nosso pensamento se expande, e consequentemente nossa vida se enriquece. É esse tipo de ração refinada que as galinhas da granja jamais conseguirão engolir.
   Tá dito.