SINDROME DO PÂNICO

Não ter ligação com nada e fazer tudo. Naquele ano eu não ficava uma noite em casa. Me sentia psicodélico e apaixonado. Engraçado, eu amava Jane, mas me sentia desconectado de tudo. Década de 80, época em que era obrigatório ser moderno. Então eu fazia video-arte, escrevia textos niilistas e lia Bukowski, Heminguay, Nietzsche e Dostoievski. Os gênios do cinema se chamavam Peter Greenway, Terry Gillian e Wim Wenders ( engraçado como os gênios passam.... ). Como todo cara "inteligente" eu odiava os EUA, a igreja, meu pai e toda forma de poder. E saía pro Bixiga, pros Jardins e pra praia. Pra beber e fumar. Engraçado como não me reconheço nessa época. Era um eu sem Yeats, sem cães, sem sol e sem dúvidas. Pois não havia dúvida alguma: o mundo era um acidente. Deus, pai e familia eram imposturas.
Como hoje eu sei, meu ego me asfixiava. Tudo era: eu sei, eu sou, eu sinto, eu quero. Nada mais entrava nesse eu. Até que numa noite quente alguma coisa entrou. Na marra.
Me entupi de haxixe. E, apaixonado que estava por Jane, que havia dormido com meu melhor amigo, pirei. Na época ninguém sabia qual o nome daquilo. Eu tive ondas de pavor com ondas de frio. E a terrível constatação que derrubou meu mundo: eu não sou dono de mim. Nada controlo, nada sei, nada posso prever. Eu desabei. Era a tal síndrome do pânico, doença que salvou minha vida. Porque salvou? Ela derrubou muros que me deixavam estagnado. Explodiu meu mundinho niilista. E me fez sentir dor de verdade, dor vinda de fora, não imaginada. Eu nasci naquela noite. A síndrome foi um parto.
Jamais deixei de trabalhar ou de ir a faculdade. É engraçado isso. Me encolhi em pavor na certeza de ter enlouquecido, mas nunca deixei de ir à rua. O triste é que naquela época não havia um diagnóstico. Ou não, isso fez com que eu pudesse ser esse barco a deriva.
Me aconselharam a umbanda. Fui. A mãe de santo disse que alguém me fazia mal. Pediu um caminhão de mantimentos. Depois fui a centro espírita. Tomei doze passes e fiquei com mais medo ainda. E uma amiga me indicou seu terapeuta. Fui na esperança de que ele me dissesse que não era caso de internação. Não era. É engraçado. Eu pensava que todo psicólogo era um sábio. Que para ser terapeuta era preciso ter lido tudo de Freud, de Lacan, de Jung e de Adler. Que todo psicólogo sabia tudo sobre filosofia, história e religião. Quando notei que ele lera apenas dois livros de Freud e alguns capítulos aqui e ali, me decepcionei. Mas criamos uma relação de amizade. Na verdade é apenas isso, voce paga um estranho para que ele faça o papel de seu amigo. Triste, mas é só isso. Em quatro anos ele me ajudou a falar de mim mesmo e assim me amar um pouco mais. Mas todos os problemas que eu tinha permaneceram exatamente iguais. E provávelmente alguém dirá que dizer isso agora é parte do processo. Bem... cada um é livre para crer no que quiser. Ele me mostrou que terapia é questão de fé, jamais de ciencia. Funciona se voce crer. Voce não precisa crer num comprimido. E ciência é o comprimido.
Naqueles anos o que mais me ajudou foi o amor que tive por Andrea, uma menina louca que me levava à praia. Com ela eu redescobri o surf e o rocknroll. E logo em seguida a volta da minha tia ao Brasil, o que me fez redescobrir a felicidade que existe em se ter uma familia. Aprendi muito com meu cão, Nicky. Ele me livrou da insonia, fez com que eu aprendesse a cuidar sem esperar retorno e me obrigava a brincar, brincar como uma criança. Até hoje desconfio de quem é incapaz de amar um bicho. De quem só ama quem pode lhe retribuir. É a grande lição que aprendi, foi meu renascimento: amor, familia e animais. A poesia veio junto e o prazer de ler surgiu depois. Renascimento.
Mas a deprê persistia. Todo fim de tarde era aquele aperto no peito e a vontade de chorar. Eu ria, fazia piadas, brincava e me apaixonava, mas a dor estava sempre lá, ao meu lado.
Então deram nome à coisa. Sindrome do Pânico. Fui me medicar e o aperto se foi. É óbvio que me tornei um fã de biologia e quimica. Durante algum tempo a vida era questão de substâncias que se combinam. Toda a dor é uma questão de desequilibrio quimico. Nunca fui tão ateu! O protótipo do materialista. Estranho notar hoje que eu não pensava nada, tudo estava respondido. Árido. Seco. Sem dor.
A morte de meu pai veio balançar toda essa certeza. Me tornei um Espinozista, a vida é uma aposta. Voce aposta num caminho sem jamais ter como saber o resultado desse lance. Me tornei um seguidor de Pascal. O eu é a raiz de todo mal. Somos felizes quando abrimos mão desse eu, quando ele se torna nosso escravo. E me vejo como aquele que sabe que nada sabe, mas que curioso, tenta compreender esse não-saber. A sindrome me ensinou o quanto somos limitados, que nosso cérebro é apenas músculo, que a vida nos é incompreensível, mas que é nossa sina procurar entender. O tempo só existe em nós.
É lógico que eu preferia jamais ter vivido nada disso. Ter sido um.... o que mesmo?
Talvez a lição seja essa, é tudo um caso não saber.