MAL ESTAR DO HOMEM MODERNO: STENDHAL, O VERMELHO E O NEGRO ( DE UMA AULA DE LITERATURA )

Pouco nos damos conta, mas até os finais do século XVIII inexiste o mal estar do ser perante a realidade. Nos textos pode haver dor e sofrimento, mas ela é provocada por guerras, fomes, injustiças de deuses ou de reis; não há sinal da dor provocada pela inadaptação do homem a seu mundo. Quando a tragédia se dá, então, ela ocorre por uma ação do destino, por uma sina; a partir da modernidade essa tragédia acontece por um mal que acompanha o personagem: o desconforto com a vida. O mal não vem de um azar, de um fato que ocorre, ele passa a existir no meio em que ele se move, habita o mundo real, está na cidade, nas ruas, e mesmo no campo.
De onde vem esse mal e porque ele surge nesse momento?
Para responder a isso precisamos fazer uma pergunta: Qual o maior mal? A morte. O que nos aterroriza na morte? O esquecimento, o deixar de estar aqui, o deixar de ser. Em suma, o tempo como forma de violência impessoal que a tudo leva, destrói e apaga. Essa é a pista:
Por mais doloroso que seja o drama de Hamlet, nada há ali que anuncie a morte daquele mundo. Hamlet sofre e morre, mas ele sabe que seu universo permanecerá. As coisas que ele conheceu e amou, os costumes que o encantavam sobreviverão a ele. Na Inglaterra com a revolução industrial e na França com a revolução tudo isso será perdido. O homem assistirá pela primeira vez a morte de seu mundo ANTES de sua própria morte.
Na Inglaterra essa violência que destrói vilas, estupra bosques e escraviza homens a minas e a fábricas, é mais contida. Ela é temperada por uma sensação de progresso, de enriquecimento, de poder do intelecto. O homem se assusta, perde seu chão, suas referências, mas não perde suas certezas. O rei continua em seu trono e a igreja anglicana continua impassível. É por isso que nunca veremos autores ingleses tão desesperançados quanto aqueles de países subjugados ou destruídos. E nem como os franceses.
Na França o choque foi maior, pois com os lugares e os hábitos se foram também os reis e a igreja. Tudo foi colocado de ponta cabeça em cinco anos: mortes, sangue, traições, o fim de um mundo de certezas e de previsibilidade. O fim absoluto. Quando Napoleão irrompe há a fé de que ele era o motivo de tanta dor, de que ele seria o grande herói a reordenar a vida. Mas ele é derrotado, a depressão se faz desconforto constante. Stendhal é o primeiro a escrever( e sentir ) isso.
Existe uma doença que se chama "SÍNDROME DE STENDHAL", ela é uma incapacidade de se viver em meio a coisas que mudam sem parar e sem motivo. Esse era Stendhal: um apaixonado por Napoleão que o vira ser derrotado e preso. Um homem que apesar de republicano sentia imensa saudade da nobreza monárquica. Ele não aceitava um mundo que VALORIZAVA O QUE UM HOMEM FAZ, E NÃO O QUE ELE ERA.
Em seus romances o herói não pode viver em meio ao tédio, a falta de brilho, a ausência de paixão. Se a vida real é hostil ( ela é feita para aqueles que nunca pensam e nada sabem sentir ), só resta a seus heróis ( como Julien Sorel deste apaixonante O VERMELHO E O NEGRO ) o amor, amor feito de conquista, de desespero, de enfrentamento a ordem burguesa e de derrota final. O herói deve perecer ou não seria um herói. Se vencesse daria valor ao mundo real, morrendo se divorcia desse mundo que o ofende. Julien vive como um Napoleão, enfrenta a vida, conquista, tenta ascender e é derrotado porque DEVE ASSIM O SER. Stendhal redime Napoleão de seus erros. Apesar de admirar a liberdade inglesa, ele não deixa de se indignar com a vitória do pragmatismo britânico.
Desde então, desde os românticos alemães e ingleses, que desejavam voltar a idade média ou viver em comunhão com os anjos, até Stendhal, não existe mais nenhum tipo de arte séria que mostre seus personagens a vontade na vida real. Voce nasce num mundo que corre, vê todas as suas certezas se transformarem em pó e aturdido, tenta encontrar um só ponto de referência, algo de imutável em meio ao furacão. Voce passa a negar a realidade ou a cinicamente glorificar o vazio. Quando Julien Sorel se deixa ser morto ele instaura a época dos derrotados profissionais. Os Cazuzas e as Amys.
Stendhal sentiu tudo isso, intuiu o que aquilo era e deu ao mundo o molde de um tipo de sensibilidade. Sem casa, sem rua e sem abrigo, nos tornamos todos vira-latas.