A SALA DE MÚSICA- SATYAJIT RAY, UM DIRETOR COMO NENHUM OUTRO

Índia. A vastidão sem fim de um rio. Um horizonte que não termina. Um palácio a beira desse rio. Decadente, sujo, úmido. No terraço vive um velho que foi rico, e seus serviçais. Esse homem não desce aos outros andares faz muito tempo. Em flash-back saberemos o porque.
Ray criou o cinema de arte na India. Antes dele só havia Bollywood. Nascido rico, Ray usou o que tinha e o que não tinha para fazer seu primeiro filme. Este é o segundo, feito em meio a trilogia de Apu. No caos da falta de recursos, Ray fazia a direção, produção, cenários, figurinos e ainda ajudava na fotografia e na música. O milagre é que seus filmes são plasticamente maravilhosos, amplos, abertos, e também são lentos, sujos, cruéis até, mas sempre belos. Chega a emocionar vermos um tipo de vida, um tipo de cinema tão diferente do Ocidente. O tempo é outro, os sets são outros, a língua ( deliciosa ) é exótica, os rostos são estranhos. Mas há em seu cinema o mesmo espírito do cinema de Mizoguchi: nobreza. Ray ama seus personagens, mais que isso, ele nos faz sentir esse amor, mais ainda, ele nos faz sentir a dor do tempo que se vai, das mortes inevitáveis ( sempre há uma morte em seus filmes ), dos erros e dos vicios.
O erro aqui é o orgulho. O nobre decadente perderá tudo por seu orgulho, por se sentir obrigado a ser superior sempre, por acreditar em seu sangue, por vaidade sem fim. E por seu amor a música. O filme é cheio de cenas de música, todas lindíssimas, porque ele insiste em fazer saraus para e pela música. Gasta o dinheiro que já não tem com músicos e festas para seus amigos. E no ápice do filme, já no tempo presente, ele dá a última festa e o que vemos é uma execução perfeita. Música indiana ( Ustad Vilayat Khan ) que empolga, e dança que beira o sublime. Atenção às mãos da dançarina, é nas mãos que vive a arte da dança hindú. Toda a melodia é traduzida em movimentos que voam e falam.
O nobre fica extasiado, e parte numa última cavalgada, rumo ao fim. Bêbado.
Difícil fazer justiça ao cinema de Ray. Ele não deixou herdeiros ( ou todo o cinema do terceiro mundo o é? ). Seus filmes devem ser vistos em tranquilidade. Nada têm de filosóficos ou religiosos. São belas observações, isentas, sobre a vida da India de seu tempo. E se há uma moral em sua obra é apenas esta: a vida passa como dor, mas existe um momento em que ela vale a pena e se explica. Cada um de seus filmes mostrou esse momento. Um nobre.