PAI

O pai nasce em nós como um deus em vida de crente. Ele é o mundo todo. É aquela insondável figura que conhece todo segredo, que vem lá de fora, e que fala com a voz de quem sabe. O meu tinha cheiro de Aqua Velva e bigode fininho de Erroll Flynn. Chegava em casa com a noite, adentrava fazendo barulho e suas mãos tinham moedas para meus doces. Ele era imensamente forte, viril, e à vontade. Consertava coisas: o motor da bomba do poço, o exaustor da cozinha, a porta de mola, a fechadura da sala, meus brinquedos. Criava canários e curiós e estava sempre assobiando. Nas manhãs de domingo escutava rádio na cama, alto. Bandas marciais. E lia um infindável jornal. Pouco abraçava e pouco elogiava. Era um tímido. E sempre sentiu ciúmes de cada amigo que eu encontrava. Ele mágicamente resolvia problemas. Contas eram pagas, remédios comprados. Trazia surpresas: a maior foi uma tartaruga em caixa de papelão. Da padaria vinha sempre um bolo, brioches, frango assado. Seus bolsos tinham sempre chaves, maços de dinheiro e um pente. Roncava alto, dava broncas cruéis, era um mundo em si.
Mas o pai, que foi um deus, é aquele que se torna um nada quando na puberdade nos tornamos ateus. Baixamos esse homem à Terra porque não admitimos, cheios de hormônios, que alguém possa ser maior que nós. Ainda mais um velho! E tudo o que ele é passa a nos causar repulsa: os pássaros, o ronco, a voz alta, as músicas, as camisas listradas, a padaria e o bigode. Todos os seus filmes favoritos se tornam os mais detestados e o cheiro de Aqua Velva uma lembrança a ser apagada. O tamanho da queda é proporcional ao tamanho do deus. Trocamos o pai pelo mundo.
Vem a tragédia então: O deus morre e o mundo se faz vazio. Os olhos que te olhavam se fecham. A voz que te assombrava é calada. Voce não é mais "um filho". O silêncio vence.
Hoje é dia deles. De quem fez voce. De quem te deu a vida. De seu deus pessoal.
Passei toda a vida brigando com ele. E sei que se ele estivesse vivo, continuaríamos a brigar sem parar. Porque eu queria que ele me desse algo que ele jamais poderia dar. Amor absoluto. Dar esse amor o anularia, faria com que ele deixasse de ser pai. Minha raiva por ele tinha o tamanho exato de minha mágoa. E a ironia da vida se faz dia a dia; cada vez me pareço mais com ele. A mesma voz, o mesmo modo de andar, expressões que repito, conceitos que agora eu sigo. Em fotos me assusto com meu olhar que é o dele. Me assusto? Ou me orgulho?
Ah meu pai.... a mágica da vida é que nada sabemos sobre ela. Tudo o que eu tinha certeza não foi o certo. E agora aqui estou, vendo seus velhos faroestes, sentado em sua poltrona e assinando seu nome em cada linha que escrevo. O sangue é uma coisa séria.