OS PRIMEIROS A GENTE NUNCA ESQUECE

Tinha uma capa de um azul profundo, aquele azul que é quase preto, mas permanece sendo todo azul. Nesse azul, que era o céu londrino, Peter Pan voava vestido em verde. E com ele vinham Miguel, Wendy e o outro que não lembro mais seu nome. A capa cheirava a tinta recèm impressa e o título era escrito em dourado. O Big Ben emanava luz quente e sombras da cidade eram adivinhadas embaixo. Esse foi talvez meu primeiro contato com a escrita em forma de livro. Ou não? Renard, Velha Raposa, terá vindo antes? Sei hoje que Renard é a mais antiga narrativa daquilo que viria a ser a França. O livro que li era imenso, formato grande e cheio de ilustrações em preto e branco. Renard era o simbolo do caráter gaulês em oposição aos romanos: o gaulês era malandro, os romanos, trouxas. Renard era uma raposa, as galinhas eram os trouxas. Li lentamente, que idade eu tinha? Sete? Mas havia também outro presente de minha madrinha ( Renard foi presente dela ), O Zorro, com seu cavalo negro correndo em meio ao pó de uma vila mexicana. Esses três foram livros que ganhei, que li, mas não foram escolhas, surgiram em minha vida. O primeiro que pedi, escolhi e li inteiro foi A Ilha do Tesouro, de Stevenson, e foi aí e exatamente nesse momento, aos 9 anos, que meu amor aos livros foi afirmado. Veio em plástico transparente e o cheiro que ele exalou ao ser aberto é dos melhores perfumes que já senti. A capa dura, roxa, com a ilustração magnífica de um bote ao lado de um navio. Desse bote saem os piratas, um deles com uma lanterna na mão. O texto fala de portos, mares, tesouros e ilhas. De locais secretos, de traição e de coragem. Depois veio Tom Sawyer de Mark Twain e O Conde de Monte Cristo de Dumas. Com Tom Sawyer eu senti pela primeira vez a despersonalização que um grande texto nos dá. Me fiz Tom e passei a percorrer o Morumbi atrás de meu Mississipi e de uma ilha deserta ( até hoje procuro ). Tom Sawyer se tornou uma febre em minhas tardes de doce vagabundagem, tudo o que no livro acontecia eu tentava reviver em meu mundo. Mas por que falo tudo isso? Para dizer que eu penso que não temos muita consciência do quanto é decisivo aquele momento, o segundo em que vemos nosso primeiro livro, em que abrimos nossa primeira capa, em que penetramos na primeira história. O virgem cérebro capta seu primeiro sinal, um rumo, um rastro, cria um mito. Grava-se em território verde a primeira trilha. Recordo, e isso é um quase milagre, meu primeiro filme. Sonho de Uma Noite de Verão entrou em mim como um delirio. Foi numa idade tão remota que passei todos os quarenta anos seguintes pensando ter sido um sonho de infância e não um filme. Recordava de várias cenas como se tivessem sido sonho infantil, sonho em que eu era personagem ( Puck ). Sómente em 2007, ao rever esse raro filme em dvd ( filme de Max Rheinhardt, superprodução da Warner de 1934 ), é que abismado e aturdido, revi na tela "meu sonho de criança". Recordo aquela noite, de festa em casa, muita gente falando, eu zanzando por entre aquelas pernas altas de adultos fumantes. A TV ligada sem ninguém a assistindo. Então noto que nessa tela algumas fadas dançam e em meio ao bosque misterioso um menino-duende ri e pula. Páro e fico hipnotizado, absorvendo a rainha que chora, o enfeitiçado que se torna burrico, a música que brilha. Nada compreendo do que vejo, mas vejo. Foi essa a minha entrada no mundo do cinema, e, mais importante, em Shakespeare e no mito celta. Após esse momento eu percebi que toda imagem é mágica, sentimento que fica até hoje em mim. Ao absorver tudo isso eu podia me isolar e viver essas imagens e essas histórias em território de ninguém. Eu morava na periferia de SP, Morumbi, e após andar vinte minutos eu me encontrava no vazio, em ruas sem dono, sem muros, sem cercas, sem nada. Podia então me perder, me deixar, ouvir o vazio, ver o nada, estar sonhando. Nenhum ponto de referência, nenhum caminho reto, apenas aquilo que hoje se chama de nada/vazio, e que eu sei/sabia ser a vida real. Um céu imenso, vento e sombras, ruído de água e espaço. Livre livre livre. Amigos meus de Moema e do Itaim Bibi me contam que naquele tempo em seus bairros também era assim. Voce andava vinte minutos e se encontrava num grande vazio, na terra de ninguém. Penso que nas bordas da cidade de hoje se voce andar vinte minutos cai numa favela ou num descampado com lixo. Não há mais terra de ninguém, todo espaço é de alguém. Portanto é até bom que as crianças não leiam mais Tom Sawyer. Jamais achariam lugar para procurar um Mississipi ou uma ilha. Melhor que leiam Senhor dos Anéis ou Harry Potter, fantasias que só podem se dar dentro da cabeça e jamais em algum lugar "lá fora". Ninguém brincará de ser Harry, jogará numa tela. A vida nunca foi tão rica, tão fácil, tão cheia de coisas. A terra de ninguém é agora totalmente habitada.