O FUTURO É UMA CAÓTICA PROMESSA NÃO ESCRITA

A gente nunca sabe o que virá depois. Às vezes adivinhamos, mas é isso, adivinhação, acaso. Ontem estudamos um texto de Paul Valéry. 1922. Ele percebe o futuro da escrita. E acerta. O leitor se faz, desde 1800, tão importante quanto o autor. Mas não por bancar financeiramente a obra, não. Mas sim porque quanto mais se lê mais se penetra no mundo do escritor e mais se percebe que sua beleza e sua atemporalidade reside no erro, no que ele tem de igual a quem o lê e não em sua "divindade". Valéry nota então que para se entender a arte é preciso ter uma atitude individual- ou seja: eu lerei aquele texto a meu modo, diferente do modo de qualquer outra pessoa. Mas, o texto continuará sendo ele-mesmo: desafio constante a interpretações várias. Há mais. Shakespeare e Da Vinci são os pontos culminates do ser moderno. Te surpreende? Explica-se. No tempo de Leonardo os estetas amavam Michelangelo e Rafael. Da Vinci era uma curiosidade que fazia obras nunca acabadas, ele era imperfeito. Eis o modernismo! Leonardo não almejava a perfeição, ele sabia que a vida é caos e jamais se permitia ser acabado. Rafael, hoje amado, mas amado como algo morto, era perfeito e bem terminado. Apurado. Michelangelo sobrevive graças aquilo que ficou de inacabado, de dramático. O azar de sua vida foi sua sorte para o futuro. Mas Leonardo não! Tudo nele é esboço, é obra em andamento, é projeto, é tentativa falha ( gigantescas falhas ). Ele é mais que moderno, é vivo. Quando vivo Shakespeare era um sucesso. Mas um sucesso sem arte. Era considerado apelativo, grosseiro, um autor que misturava drama com comédia, que usava a violência sem razão de ser. Durante os duzentos anos seguintes a sua morte, tempo da razão absoluta, gostar de Shakespeare era considerado mal gosto. Ele era um bárbaro que não sabia refinar suas obras. Um crente em feitiçarias, em fantasmas, pior: um irracionalista. Com os romanticos alemães isso começa a mudar. Schiller e Goethe o reabilitam e o século XX tem uma Shakespearemania. Nosso tempo é o tempo de Shakespeare. Irracional, não refinado, uma mistura de poesia e grosseria, violento, caótico, sublime e grotesco, comico e trágico. E o principal: um bom leitor, um leitor moderno, vê em Shakespeare uma infinidade de leituras, inesgotável fonte de idéias. Hamlet pode ser farsa, freudianismo, marxismo ou delírio. Macbeth ateísmo, gnosticismo ou poesia satânica. Shakespeare conseguiu antecipar o século XX e provávelmente será presente por todo o século XXI ( se nossa era é virtual, tudo nele sempre foi virtualidade ). A leitura moderna só comporta então aquilo que abre portas para indefinições. Borges, Flaubert, Melville, Sebald, Poe, Calvino ou Joyce e Proust. Textos que se abrem infinitamente, que convidam a debate, a delirios, textos caos. Mann, Stendhal, Nabokov, Eliot, Stevens, Mallarmé, Cervantes. E outros mais. É o grande erro da literatura de auto-ajuda: eles falam do caos como coisa apreensível. O caminho da literatura é o oposto: o apreensível tornado caótico. Por fim, o bom autor passa a ser aquele que não se arvora estatuto de guia. Se escrito como pretensa obra de arte, normalmente tal texto torna-se um engodo. Vide Joseph Conrad ou Whitman, autores que jamais se pensaram como artistas. E que são arte e atemporalidade plena. ( O que me recorda o cinema de Hawks, Hitchcock e Ford, artesanato que se torna arte suprema pela graça do entendimento de quem os assiste ). Não há obra plena sem público que a complete. E não poderá ser completa sem um público que a saiba entender. Criativamente. Tá dito.