Uma amiga minha acaba de me ligar e falar de seu curso de psicologia. Ela está estudando biologia e neurociência. O que posso dizer? Não há algo de errado nisso? Quando procurei meu terapeuta, heróica fase narcisista de 20 anos atrás, o que eu procurava era um sentido para minhas visões, uma luz para minha dor e principalmente o encontro com uma mente MAIOR QUE A MINHA. Eu queria um pai, um gurú, um mestre, uma revelação. Essa foi minha experiência, outros podem querer apenas um tipo de cientista-médico, mas em mundo onde TUDO é funcionamento, venda, produção e preto no branco, onde a DITADURA da razão é a única fé presente, não seriam os psicólogos os únicos com os quais poderíamos, nós, neuróticos inconformados, contar? Não deveriam ser eles nossos padres ateus? Os versados em segredos inconfessos, os depositários dos caminhos à liberdade, os guias das trevas? Mas o que as escolas formam? Vomitadores de freudianismos que Freud, se vivo, renegaria, ou ainda pior, pseudo-cientistas do cérebro, quando na verdade deveriam ser estudiosos da alma.
Volto a dizer: Alma e Deus são imagens que existem desde que o Homem é Homem e crer nelas não é crer em igreja, ou sequer crer na existência de um Ser criador ou de uma alma imortal. Crer em Deus e Alma é crer no papel central que esses dois mistérios exercem na vida do indivíduo e da humanidade. Mistérios que vivem dentro de mim e de voce, símbolos que atemorizam e exasperam todo aquele que deixa de ter contato com aquilo que o alimenta: transcendencia. Só creio em psicólogos que possuem a coragem e a bagagem para adentrar esse reino submerso a meu lado. Jamais entregaria meu cérebro a quem vê nele apenas carne e sangue. ( Mesmo que ele seja apenas carne e sangue. )
Quando uma pessoa morria no Tibete, os parentes chamavam um Lama que lia o Bardo Thodol para o morto. Esse livro ensina o morto a adentrar o reino da morte e a se preparar para o retorno ao nosso mundo ( nosso ? ).
Quem já teve a experiência de enterrar um ser querido sabe que nossa sociedade se faz nua nessa hora. É quando percebemos que ao ganhar casas e coisas "modernas", ao abraçarmos a ciência e a razão, perdemos completamente o modo de lidar com a dor da morte. ( Assim como perdemos o modo de lidar com os filhos, o modo de se tornar adulto, como envelhecer, o modo de amar, e modos de ver e pensar a vida. ) O mundo atual simplesmente se cala quando o tema é morte, velhice, família, amor. Não se engane: se fala muito de amor e familia, mas não é sobre amor e familia que se fala na verdade. O amor se torna sexo e a família uma idéia de funcionalidade. Amor como comunhão e familia como continuidade são conceitos ignorados. Do mesmo modo como a igreja se tornou algo que nada tem de religioso, esses temas foram travestidos. Voltando ao livro....
"Quando vires que este vazio de teu próprio sentido é a natureza de Buda, e considerares como tua própria consciencia, então estarás no espírito de Buda."
O ser morre e sente por um breve instante ( breve? ) a maravilhosa despersonalização. Percebe o que é o Buda: O Vazio. A mente como guerra de opostos se torna então o vazio, onde cessa o conflito. A razão se esvai e o eu se dissolve com ela. O ser sente o Buda ao perceber que ele sempre fora o Buda. Deus dentro de nós mesmos. Revela-se a diferença central entre ocidente e oriente. Para nós Deus está no alto, reina sobre nós; para eles Deus vive dentro deles, nas profundesas de sua mente. O ser morre e desaparece, o Deus que sempre viveu permanece.
Mas esse momento de luz logo desaparece. O ser é então sorvido pelas imagens de dor e de horror. Surgem imagens de monstros diabólicos, de torturas sem fim e de DESEJOS INSACIÁVEIS. A fantasia assume o controle e o ser se perde em imagens e delirios. O lama, ao lado do morto, narra essa fase elucidando o ser sobre aquilo que ele irá vivenciar.
Vem então uma fase de reconhecimento do corpo e por fim o desejo sexual, desejo que faz com que o ser volte a reencarnar. A visão do sexo entre os pais seria a última visão antes do retorno. Pois bem... A sucessão dessas fases, que aqui descrevi muito pobremente, é uma surpreendente versão milenar do PROCESSO DE TERAPIA! Ao ler o livro de trás para a frente, invertendo a ordem das fases, percebemos que é narrado todo o caminho que o ser faz para encontrar sua individuação e poder unir suas oposições. Da vida de desejos sexuais puros, passando pela crise de medo e de sentido, pela quase psicose, e encontrando afinal a verdade transcendente. Verdade que estaria na constatação de que todos temos Buda e que a vida nos é dada.
Nesse processo a razão é negada, a segurança abandonada e a visão se faz do todo e não do detalhe. A tênue máscara, o véu que nos cega, é despedaçada. Tudo aquilo que pensamos ser "eu" se mostra ilusão. O eu é inexistente e a vida desse eu não pode ser preservada, pois ele jamais foi vida. Vida é o todo, vida incriada, vida sem regra e sem objeto. Trajeto de nascimento, de entrada nas entranhas do inconsciente, do pavor frente aos abismos do símbolo.
Intuitivamente, os tibetanos descreveram nesse livro milenar, tudo que é comum a todo processo de individuação, todas as etapas do enfrentamento, a descoberta de que tudo está dentro de nós e de que a realidade é criada por nossa mente inconsciente ( jamais pela razão que cria apenas ilusões ). Inconscientemente procuramos esse confronto, irracionalmente nossa vida é feita e decidida.
O mundo tecnicista tem negado e ignorado toda essa vida interior e decisiva que habita em todos nós. Sedentos de transcendencia, procuramos no amor/sexo, ou na arte/donisio aquilo que só pode se encontrar, com muita dificuldade e sem garantia alguma, dentro de nós mesmos. Não há espaço para as manifestações do inconsciente em mundo de explicações rasteiras e fórmulas infantis ( onde a igreja é a primeira a negar a interioridade com seus cultos e cerimonias espetaculosas ). Nosso ser mais íntimo é a ÚNICA verdade e a única via para a felicidade.
Negar isso é a ilusão.