O DISCURSO DO REI- TOM HOOPER ( E GEOFFREY RUSH + COLIN FIRTH )

No relançamento de VIOLÊNCIA E PAIXÃO de Visconti, o critico da Folha percebeu ao ver esse filme ( genial e contundente ) de 1975, quanto o cinema tem perdido, ano a ano, de ousadia e de profundidade. O cinema atual ( aquele feito de 1995 em diante ) exige quase nada de seu público e em troca dá migalhas de emoções superficiais e bem digestíveis. Dito isso é preciso dizer que todos os candidatos a melhor filme neste ano me decepcionaram. Eles variam dos muito falsos aos absolutamente banais. Este filme profundamente inglês é de todos eles o mais conservador, e não por acidente, aquele que dá o maior prazer.
Na relação do terapeuta de voz com um rei gago, há reflexos da relação de um psicólogo com seu paciente, de um padre com seu fiel e até de um artista com sua arte. O filme, longe de ser genial, mas digno e repleto de momentos radiantes, tem pelo menos uma cena maravilhosa: aquela em que o rei fala de sua relação com pai e irmão e se abre pela primeira vez. Vemos alí o milagre que existe no trabalho de um grande ator com um grande papel ( e sendo instigado por outro grande ator ). Colin Firth, ator que admiro desde 1994, ator que sempre cito e que meus amigos mal davam bola, ator que já fora genial em seu Darcy, que fora excelente até em filmes simples como Simplesmente Amor ou Mamma Mia, faz com voz e face uma sinfonia de dor. Mas Firth mostra a dor como peça de ourivesaria, esse ator completo consegue mostrar a dor em surdina, uma dor discreta, doída, gotejante, inconsciente. Geoffrey Rush o acompanha a altura. O seu tipo, um ator frustrado que ajuda os outros a ter voz, tem fragilidade e loucura, alegria e melancolia. O filme nos dá a dádiva de os poder admirar. ( E ainda tem Derek Jacobi, Anthony Andrews e Helena Bonham-Carter, todos maravilhosos. E em discreta passagem, a grande e fulgurante Claire Bloom ).
Tom Hooper, diretor do muito bom Malditos United ( critica escrita e catalogada por aí ), dirige com segurança, mas sem grande ousadia. Visualmente o filme se parece com tv. Tudo é pequeno e em close. É um filme deste tempo: pequeno. Mas os atores e o bom texto o levam para o alto. Conseguem me fazer recordar essa coisa chamada "cinema inglês". O que é o cinema inglês típico?
Recordo de O MENSAGEIRO. Foi o primeiro filme tipicamente inglês que ví. Aos 15 anos. O filme tipico inglês tem sempre excelentes atores. Dos protagonistas até o porteiro da mansão em seu papel sem falas, todos são perfeitos. Têm voz, sabem usar o olhar e conseguem parecer elegantes com roupas de operário ou à vontade de fraque e cartola. Nesse tipo de filme sempre há uma cena de chuva, de neblina e as bocas exalam vapor. As falas são ditas com cuidado, sem pressa, com gosto. Chá e táxis ( ou charretes ) e casas velhas mofadas. A fotografia é sempre amarelada, com raios de sol caindo entre folhas. E todos eles, sem excessão, propagam amor aos seus atores. Fernanda Montenegro sempre diz que todo ator inglês é genial. São pessoas que crescem declamando Shakespeare, lendo Dickens e Jane Austen, tendo uma tradição de segurança e autoridade nos palcos que vai de John Gielgud a Peter O'Toole, passando por Olivier, todos os Redgraves, Day-Lewis, Jeremy Irons, Richard Burton, Rex Harrison, James Mason, e mais uma lista infinita que engloba Helen Mirren e Judi Dench, Julie Christie e Vivien Leigh. Com Colin Firth e Geoffrey Rush, essa tradição ( que eles amam ) fica viva e bem representada. ( Rush é australiano. Mas caso voce não saiba, a Australia tem uma das mais ricas tradições "anglófilas" em teatro. Desde a época de Peter Finch. )
Voltando a este bom filme.
O que se passa com a monarquia? É o segundo filme em pouco tempo ( o outro é A RAINHA, magnífico ) a exaltar a figura do monarca. Me parece que a Inglaterra, adivinhando sua inerente irrelevância futura, começa, felizmente, a dar o justo valor a Elizabeth, George e Vitória. Símbolos de toda uma nação, de uma opção, de um modo de ser e de estar no mundo. Quando a monarquia inglesa se for, mesmo tendo tido Henriques, Eduardos e Charles medíocres, teremos a noção clara do que toda aquela aparente inutilidade queria dizer e assegurar.
Há uma cena perto do fim do filme que me emocionou profundamente. É uma fala do rei George, ao som do Quinto concerto para piano de Beethoven. Nessa cena há algo de doloroso, de constatação de fim, de glorioso e decadente. É cena para se rever e rever.
Antítese do filme do sempre oportuno ( oportunista? ) Fincher, este filme perderá seus prêmios Oscar para a tal rede. Mas se Colin perder, mesmo que seja para Jeff Bridges, haverá uma injustiça Richard Burtoniana na noite. O que ele faz neste papel me recordou Michael Redgrave. Não é pouco.