O MALDITO: ÀS AVESSAS, LIVRO DE J.K.HUYSMANS

Ciclos, todo tempo nega seu antecessor imediato. O garoto dos anos 80 odiava o doidão dos anos 70, e essa década, a de 1970, seria amada pelos anos 90. Toda arte é assim e em literatura isso é ainda mais flagrante.
Os românticos abominavam os livros do classicismo e os realistas/naturalistas negavam o romantismo. Mas em fins do século XIX vem o simbolismo recuperar o mito romântico. E nesse mundo de cores, impressões vagas e dandismo, nada é mais radical que este livro. Livro que também poderia ser chamado de DIÁRIO DE UMA NEUROSE.
O que move seu personagem, Des Esseintes, é o nojo, o desgosto e a náusea. O mundo que ele vê é um universo onde o comércio é rei. Tudo é dominado pelo lucro, pelo comum e banal, pela América de novos ricos e de vulgaridade histérica. Para lutar contra isso ( que é aliás a luta de todo simbolista. Os românticos odiavam a era industrial, os simbolistas radicalizam isso e odeiam tudo o que seja "comum" ), des Esseintes isola-se em palácio. Lá ele criará seu próprio mundo, mundo que será sua imagem, um tipo de espelho que remete a sí-mesmo. O livro, esquisito ao extremo, não tem ação, é a descrição desse palácio, desse cenário e dos sentimentos do personagem.
Salas com plantas carnívoras, salas com aquários gigantes e perfumes de areia e mar, salas londrinas e salas que são como infernos vermelhos. Des Esseintes cria ambientes, continentes, realidades virtuais. Se o mundo se tornou algo que o desgosta, ele criará seu próprio universo; e esse universo é ele-mesmo; fato de todo neurótico, ele é incapaz de sair de dentro de seu delirio, seu único interesse verdadeiro é seu próprio estado, ele ama obsessivamente seu sintoma.
Mas há mais. A virtualidade das células ilusórias de nosso mundo atual sem contatos de risco, já está antecipada aqui. Ele "viaja" a Londres comendo comida inglesa, sentindo cheiros londrinos e se cercando de um ambiente inglês. Em sua casa Londres é mais londrina que a Londres real. O livro me lembra muito certos filmes de Alain Resnais ( Marienbad principalmente ) com seu mundo fechado; é um livro "do mal", asfixiante.
Ficamos sabendo de seus gostos. Ele só admite aquilo que as massas não conhecem. Se um livro, um pintor ou um músico é um sucesso não poderá ter qualquer valor. É um fato: para todo simbolista a unaminidade é idiota. Assim, ele ama Moreau e Redon em pintura, Poe e Baudelaire em poesia, a filosofia de Schopenhauer e textos de vários escritores "malditos". Pois des Esseintes é atráido por tudo aquilo que desgosta o homem-comum, ele adora tudo o que é satânico, tudo o que é doentio, sujo, drogado, sexualmente mórbido, amoral e apodrecido. Seu extremado esnobismo é um dandismo que tende a doença e a morte, porque o homem vulgar teme acima de tudo aquilo que é podre, sifilitico, infernal. Ele provará drogas, ficará doente, terá alucinações, amores com mulheres masculinas, com mulheres doentes, com mocinhos frágeis, usará as pessoas e, terrível maldição, sentirá um tédio sem fim.
Pois nesse mundo auto-criado, o tédio é sempre o perigo. Tudo é provado por des Essientes, e tudo é jogado fora. As coisas se tornam sombras, perdem a urgência, o sabor. Chegando ao fim do livro ele se depara com a escolha : ou o revólver ou a cruz.
É fato, muitos simbolistas acabam se tornando católicos. Aquele tipo de católico que se veste de preto e faz preces em latim. O carola extremado, que condena todo pecado. Numa visão superficial, essa conversão pode parecer arrependimento pelos pecados passados, mas não é. No catolicismo o simbolista radical vê o mergulho definitivo no "mundo fora do planeta burguês", em terra que não faz parte de indústria/ciência e comércio, em plano simbólico que se alimenta de imaterialidade. E além de tudo, uma crença, que quando é radicalizada, se torna a mais esnobe e conservadora das fés, a crença católica, com seus bispos e cardeais, seus dogmas incompreensíveis e suas igrejas de ouro e de exorcismos. A aristocracia da fé.
Este livro, diabólico, hiperbólico, barroco, cansativo, perturbador e extremamente doentio, é uma chaga na literatura do século XIX. E de forma certeira, é uma antecipação de uma realidade que se aproxima. No pior futuro possível, todos nós seríamos des Essientes...e creia, muitos de nós já o são.