ESPANHA

Cruzei os Pireneus e era madrugada escura. Parado em estalagem me servem um sanduíche. Uma baguette de um braço de comprimento. Pão duro, seco, e dentro um recheio de omelete, jámon, queijo e azeitonas. Um sanduíche monstruoso para cada um de nós. Para beber não havia água ou suco de nada. Vinho apenas. Um galão de vinho incrivelmente ácido.
Então continuar o caminho. E ficar surpreso ao notar que em Bilbao às duas da manhã as crianças ainda jogam bola na rua e as mães estão sentadas à fresca para fofocar. Ninguém dorme no verão da Espanha. Entenda, não se trata de balada, é vida familiar na madrugada. E quando amanhece a paisagem é desértica. Planície sem fim. Sem árvores, sem estradas secundárias, um vazio. Poderia ser outro planeta. Poderia ser outra época. É a Espanha.
Na cidade, uma da tarde tudo fecha. Tudo mesmo! Lojas, cinemas, barbearias, supermercados. Volta a abrir às quatro. Falo dos anos oitenta. Não sei se a Espanha hoje se americanizou. Se já se instituiu o almoço de 45 minutos. Mas até 1989 havia a siesta. Voce ia trabalhar às 10 e parava às 13. Voltava às 16 e saía às 22hs. Um espanhol não podia trabalhar oito horas diretas sem o sagrado direito de ficar 3 horas à mesa. Pegos de surpresa, nós turistas, portas cerradas em nossa cara, íamos almoçar longamente. Ou puxar um ronco no hotel. Lá a vida começa às 23 horas.
Espanha... foi a mais selvagem das colônias romanas. Não se entregava nunca. E depois se tornou mais Roma que a Itália. Berço de imperadores. Foi califado muçulmano. E se fez mais árabe que a Arábia. E quando católica foi mais beata que o Vaticano. A Espanha tem honra. Se é para ser alguma coisa, ela é até a morte.
E então tinha de ser ela a criar a mais revolucionária das descobertas: a América. Para voce ter uma idéia: descobrir um mundo insuspeito seria o equivalente, hoje, a encontrar vida em outro planeta. A Espanha inventa coisas esquisitas como a Argentina, exóticas como Cuba e mortais como o México. E ainda faz do sul dos EUA o espírito da nação mais rica do século vinte. Com a riqueza das américas, os espanhóis fazem o que todo bom espanhol faz com dinheiro: gasta. Torram fortunas em luxo, em festas, em guerras ridículas ( da qual saem sempre perdedores, olé! ). Mas não perdem a pose. Enquanto ingleses e alemães desenvolvem educação e indústria, os fidalgos espanhóis fazem procissões, conquistam senõritas e duelam pela honra.
Espanhóis que são mais dandys que os ingleses, mais sexys que italianos, mais briguentos que franceses, mas que, estranhamente, não são idealistas como os alemães. Na Espanha a vida é a verdade. É real, é crua, é sangue e fogo. Não é abstração. Tourada.
Não seja hipócrita! Fosse eu um boi eu preferia morrer lutando em arena, sem anonimato, que ser trucidado entre azulejos e em fila indiana. Como boi eu prefiro ser touro. A Espanha escolheu isso.
País da guerra civil, momento decisivo do século vinte. Pois se é para ser o mais católico dos povos, é também em Espanha que vivem os mais anti-católicos dos seres. Lá, quem é contra os padres cospe em igrejas e seduz freiras. Se peca. E vem a revolução. Queimam-se igrejas. Padres enforcados. Amor livre. Todos devem comer todos. Vale tudo. E vem a reação: hiper-conservadores criam o paredão. Pai mata filho. Filho mata avô. Na Espanha se decide o futuro do mundo. Se os socialistas vencem, o mundo será anarquista. Se vencem os conservadores, o futuro será fascista. É uma guerra como nunca mais se verá. Americanos, alemães, ingleses, canadenses, todos se alistam como voluntários. Homens e mulheres do mundo querem pegar em armas e defender a liberdade. Os governos fecham os olhos. Governos não defendem a livre-Espanha. Steinbeck, Heminguay, Hammett, Orwell, Dos Passos, todos lutam com fuzil. Mas os nazistas defendem a ordem e é nas terras espanholas que se treinam soldados alemães para a conquista da Europa. Bombardeios. Morte de civis. Bem-vindo ao mundo moderno. Tinha de ser na Espanha.
Nasce o ditador general. Francisco Franco. Modelo de toda ditadura latino-americana. Todo general quer ser Franco. E quando vem a democracia, todo socialista sonha em ser Filipe Gonzalez. Franco morre e milagrosamente a Espanha faz a transição sem dor. Os socialistas criam um esquerdismo light, educado, elegante, e o rei Juan Carlos manda os generais calarem a boca. Em 1980 a história do mundo ainda não se estagnara. Foi hora de heróis. Aqui nos brasís e nas colombias não nasceu esse líder. Pena...
Espanha que tem o maior romance da história, o Quixote, e o mais perfeito pintor, Velazquez. Espanha que inventou o modernismo com Picasso e Grís. País sempre sexual, com seus encapuzados, suas viúvas de preto, sua inquisição ( se é pra fazer, vamos que vamos!!!! ). De Lorca, de Unamuno, de Ortega y Gasset ( como são nobres esses nomes!!!! ).
Então voltei ao Brasil e namorei uma catalã. Ela tinha o nariz fidalgo das verdadeiras espanholas. Poucos amigos e muitos admiradores. E um eterno noivo, nobre e de boa família, claro. Eu lhe dava rosas vermelhas e lhe escrevia poesias ( péssimas... ). Fiquei doente de espanholismo. Falava ( calado ) " Ai mamazita como estou a sofrer!!!!!!!! ", " Trago entre os dentes a faca que me matará!!!!!", " Estou morrendo de amor, ai mamazita, como sou infeliz!!!! " Olé! Ela me telefonava. Ou chorava de ódio, ou falava com tédio e superioridade. Ela era como uma princesa orgulhosa. Eu lia poesia e ouvia Carmem. E pintei meu quarto de vermelho e amarelo.
É um privilégio ser espanhol. Ter esse orgulho e esse fogo apaixonado. Ser o dono do duende, a encruzilhada de arábia e do cristianismo. A elegancia do primitivismo, a ferocidade do paganismo. As coisas se resolvem lá, nascem lá, se aquecem por lá e é lá que a coisa termina.
Enquanto o mundo valer a pena ainda haverá Andaluzia, Castela, Galizia, Catalonia e Aragão. Bascos e Navarra. Quixotes e Sanchos, Goyas e Mirós, Bunuel e De Falla. Enquanto houver sangue haverá olé!