Antecipando o zoom, nosso olhar penetra em sala. Mas não é apenas uma sala. É um mundo. As pessoas nos olham e respiram. E começa assim a sucessão de milagres.
Sabemos todo o tempo que aquilo é uma pintura. Nosso cérebro grita isso. Mas algo escondido dentro de nós balbucia: São vivas!
A vida/morta está para sempre viva naquele retângulo. Respiram os ares do museu do Prado. Eu irei partir, voce irá partir, nossos brinquedos eletrônicos tornar-se-ão pó, e aquela vida/morta estará lá.
Ao canto do quadro há o fundo de uma tela. E um pintor nos mira nos olhos e segura um pincel. Os olhos daquele pintor se movem para dentro de nós mesmos. Segundo milagre: ao penetrarmos naquele ambiente somos penetrados pelos olhos de quem lá está. As três meninas posam ao centro. Uma princesa-criança loura e suas duas amigas. Ao lado das três belas infantas, uma anã retardada nos observa. Ela é a imagem do grotesco. Dois adultos observam a cena ao fundo, mas na verdade nos observam. Olhando o quadro, de súbito nos sentimos nús. E bem ao fundo há um homem partindo por uma porta. Um cão está quase adormecido ao canto e uma criança perturba o quase-sono desse animal. Onze quadros estão enfeitando as paredes desse aposento. E um espelho, bem ao centro, reflete um casal que olha o quadro ao nosso lado. Capturados: estamos agora dentro daquela sala de 1656.
Olhe algum tempo para essa cena e voce estará vivendo com eles. Sua mente se entorpece- desperta e tudo o que existirá então será aquela gente e aquele tempo. Nenhuma imagem feita por mãos humanas tem esse estarrecedor poder. Suga voce para dentro da obra.
Então se inicia um diálogo entre voce e as pessoas. "Desculpe ter entrado sem avisar..." E elas, fantasmas que são, nada podem responder, apenas olham seus olhos e respiram paralisadas. Me vem um pensamento: Quando nosso mundo ruir, esta obra permanecerá. Pois não se trata de pintura, é um feitiço. Aquilo é o mundo real, eu é que sou um simulacro.
Que arte é essa que se perdeu? Observando mais de perto vemos que tudo alí é fumaça, são tênues camadas de tinta. Esfumaçamento da vida, o rosto da menina loura brilha e se avermelha e os cabelos são ouro enquanto sua mão pega um frasco que se move. Sentimos raiva então. Raiva por termos perturbado aqueles seres.
Recordo que é esta considerada a maior pintura de toda a história. O único outro que pode tentar se igualar é Rembrandt com sua Ronda Noturna. Século XVII. Ouro da pintura e da filosofia.
Chego então ao muito perigoso momento em que sinto a tentação de não mais sair daquela sala. Se eles são fantasmas vivos, serei um vivo fantasma e lá ficarei. Quero acariciar o pelo marrom daquele cão imenso e quero ser olhado e olhar os olhares daqueles espectros que respiram. Serei a imagem no espelho de fundo, serei o objeto do pincel que se segura, serei parte daquele mundo suspenso. Há um perigo mortal em toda obra-prima. Elas são maiores que nosso mundo. Têm um canto de sereia que pode enlouquecer. Pois esta obra é mais que sereia, é um oceano.
Agora, na rua de novo, sinto estranhamente que as meninas me esperam para outro dia. As coisas aqui fora parecem vulgarmente mortais, e eu, num quadro, tive visões de dourada imortalidade.
Sabemos todo o tempo que aquilo é uma pintura. Nosso cérebro grita isso. Mas algo escondido dentro de nós balbucia: São vivas!
A vida/morta está para sempre viva naquele retângulo. Respiram os ares do museu do Prado. Eu irei partir, voce irá partir, nossos brinquedos eletrônicos tornar-se-ão pó, e aquela vida/morta estará lá.
Ao canto do quadro há o fundo de uma tela. E um pintor nos mira nos olhos e segura um pincel. Os olhos daquele pintor se movem para dentro de nós mesmos. Segundo milagre: ao penetrarmos naquele ambiente somos penetrados pelos olhos de quem lá está. As três meninas posam ao centro. Uma princesa-criança loura e suas duas amigas. Ao lado das três belas infantas, uma anã retardada nos observa. Ela é a imagem do grotesco. Dois adultos observam a cena ao fundo, mas na verdade nos observam. Olhando o quadro, de súbito nos sentimos nús. E bem ao fundo há um homem partindo por uma porta. Um cão está quase adormecido ao canto e uma criança perturba o quase-sono desse animal. Onze quadros estão enfeitando as paredes desse aposento. E um espelho, bem ao centro, reflete um casal que olha o quadro ao nosso lado. Capturados: estamos agora dentro daquela sala de 1656.
Olhe algum tempo para essa cena e voce estará vivendo com eles. Sua mente se entorpece- desperta e tudo o que existirá então será aquela gente e aquele tempo. Nenhuma imagem feita por mãos humanas tem esse estarrecedor poder. Suga voce para dentro da obra.
Então se inicia um diálogo entre voce e as pessoas. "Desculpe ter entrado sem avisar..." E elas, fantasmas que são, nada podem responder, apenas olham seus olhos e respiram paralisadas. Me vem um pensamento: Quando nosso mundo ruir, esta obra permanecerá. Pois não se trata de pintura, é um feitiço. Aquilo é o mundo real, eu é que sou um simulacro.
Que arte é essa que se perdeu? Observando mais de perto vemos que tudo alí é fumaça, são tênues camadas de tinta. Esfumaçamento da vida, o rosto da menina loura brilha e se avermelha e os cabelos são ouro enquanto sua mão pega um frasco que se move. Sentimos raiva então. Raiva por termos perturbado aqueles seres.
Recordo que é esta considerada a maior pintura de toda a história. O único outro que pode tentar se igualar é Rembrandt com sua Ronda Noturna. Século XVII. Ouro da pintura e da filosofia.
Chego então ao muito perigoso momento em que sinto a tentação de não mais sair daquela sala. Se eles são fantasmas vivos, serei um vivo fantasma e lá ficarei. Quero acariciar o pelo marrom daquele cão imenso e quero ser olhado e olhar os olhares daqueles espectros que respiram. Serei a imagem no espelho de fundo, serei o objeto do pincel que se segura, serei parte daquele mundo suspenso. Há um perigo mortal em toda obra-prima. Elas são maiores que nosso mundo. Têm um canto de sereia que pode enlouquecer. Pois esta obra é mais que sereia, é um oceano.
Agora, na rua de novo, sinto estranhamente que as meninas me esperam para outro dia. As coisas aqui fora parecem vulgarmente mortais, e eu, num quadro, tive visões de dourada imortalidade.