" ... e esse espetacular engrandecimento antigo, com suas ruínas de arte e inúmeros signos nobres, eu conseguia apreciar, ainda que não quisesse ser simplesmente esmagado pela grandeza daquilo tudo. Mas no poder moderno do luxo, com seus batalhões de trabalhadores e engenheiros, são as COISAS em sí, os produtos, que são eminentes, e o indivíduo não chega nem perto de ser igual à imensa soma delas."
Eis aqui SAUL BELLOW em AUGIE MARSH, conseguindo dizer o porque de eu me sentir tão mal perante a arquitetura moderna e tão bem perante cidades antigas. Andando por Roma ou Veneza somos esmagados pela grandeza da obra de GRANDES HOMENS. Cada monumento tem o nome e a face de algum herói. Prédios não remetem a ser humano nenhum. É apenas uma coisa. Esmagados pelo inanimado, sem pensamento, pelo absolutamente não humano.
" ... que em qualquer vida de verdade, voce tem de sair e ser exposto fora do pequeno círculo que abarca duas ou três cabeças na mesma história de amor. Experimente ficar, para ver, do lado de dentro. Veja quanto tempo voce aguenta."
Augie Marsh nasce em Chicago. Não conhece o pai e sua família é sustentada por parentes e pelo serviço público. Augie Marsh aos 10 anos é um malandro de rua. Vende jornais, tenta roubar e idolatra um tipo de chefão do crime. Acima de tudo, ele tenta agradar, não criar atrito, e segue sempre alguém. Augie é feliz.
"... e é isso que a humanidade sempre faz. Ela é feita desses inventores e artistas, milhões e milhões deles, cada um tentando a seu próprio modo recrutar outras pessoas para representar papéis coadjuvantes e apoiá-lo no seu faz de conta."
Augie percebe cedo que tudo é mentira. Ninguém, NUNCA, diz aquilo que realmente pensa ou sente. E desse modo, todos passam pela vida sem poder ser o que se nasceu para ser. Augie Marsh se apaixona, tenta estudar, rouba livros e os vende, mora em pulgueiros, e conhece gente, muita gente, gente rica, gente pobre, louca, sã, felizes e tristes. Tem um irmão demente e outro ambicioso que se tornará a proto-imagem do yuppie voraz.
".... como se, quando chegava o momento, deixássemos a companhia de quem quer que estivesse conosco e fôssemos reservadamente sair no braço com nosso antagonista eleito no seu esconderijo secreto."
Tentam enredar Augie no mundo dos milionários. Mas ele não cai, ele esnoba o dinheiro. Foge sempre, mas ao mesmo tempo está sempre de volta. Ajuda um aborto, se envolve em sindicato e vai pro México em caçada a águias e cobras e amor ( que sempre termina em desespero ).
" ....A GRANDE INVESTIGAÇÃO DE HOJE É QUANTO UM SUJEITO PODE SER MAU, NÃO É MAIS O QUANTO ELE PODE SER BOM."
Quem diz isso é Padilla, um dos caras que nosso herói conhece nessa jornada. Um dos muitos que fazem com que Augie se movimente, todo o tempo, logo ele, que tanto queria ficar parado. Porque Augie logo descobre que voce só pode ser voce se estiver parado.
"... no mundo da natureza voce pode confiar. Nele voce já sabe. Mas no mundo dos artefatos voce tem de ter cuidado todo o tempo. Nele voce tem de saber, e não dá pra ficar com tanta coisa na cabeça e ser feliz."
Num livro que tem um milhão de grandes pensamentos, talvez este seja aquele que mais me toca. Vivemos cada vez mais, em mundo onde PRECISAMOS saber coisas. Números de código, datas e horários, cruzar uma rua e pegar um táxi, pagar contas, ligar maquininhas, responder mensagens, cuidar do corpo, cuidar da beleza, proteger o patrimônio, cumprir horário, cumprir metas. Sobra espaço pra ser voce ?
"... tédio é a convicção de não poder mudar. O homem murcha quando pensa ser a mudança impossível. Mas não é engraçado ? Passamos toda a vida com medo da mudança e procurando o que nos faça estáveis. O amor por exemplo."
É um livro devastadoramente rico. Vem a guerra e eis Augie perdido num bote salva-vidas no meio do mar e depois eis ele casado e rico em Paris. E corneado.
Mas quem é Augie? Seria ridículo eu dizer que ele é todos nós? Mas ele é. Saul Bellow, gigante, consegue criar um adorável Candido do século XX. Otimista teimoso, apaixonado, desiludido, medroso, enganável e totalmente perdido. O livro é um colosso.