SEM NADA E A SENHORA DA VILA SÔNIA

Domingo faltou a luz na minha casa. Só na minha casa. Um problema de fiação velha. Eram 17 horas e fui comprar velas e fósforos. Ainda existem fósforos. Minha mãe entrou em desespero : como ficar sem luz ? Vou ficar deprê, dizia ela. Estranho. Uma mulher que não usa computador e nem sequer liga um som ficar tão nervosa por não ter eletricidade em casa.
Acendo uma vela na sala e abro a janela. Me deito no sofá e assisto a mangueira tomar chuva. O vento sacode as folhas e a água escorre pela calha. Um raio. Juro que pensei : Meu Deus ! A chuva é tão linda que irei morrer de saudades dela quando eu morrer... Que joguem minhas cinzas à chuva !
Minha mãe se deita no outro sofá e fazemos aquilo que lhe dava tanto medo : nada. E desse nada vem a conversa à toa e dessa conversa sinto, finalmente, minha mãe próxima de mim. Falamos sobre a casa, sobre os cães, sobre a morte de meu pai, sobre almas e sobre o bairro. Ela me conta de suas irmãs na França, seu pai, sua mãe... Há uma paz imensa nessa conversa, compreensão. Tempo que passa lentamente.
Conversamos por toda a noite e fazemos chá na cozinha escura. Os cães entram na sala e dormem roncando. Silêncio. Apenas a chuva e nossas vozes que viajam. O ronco de Charlie, de Leka, de Lili e de Baby.
Penso : a eletricidade entrou em nossas veias e nos fez elétricos. Mas hoje é água de chuva que flui em mim.
No dia seguinte, flanando pela Vila, fotografo uma casa que me pareceu risonha. A dona da casa vem conversar comigo. Fica contente por eu gostar de sua casa. Uma casa que é plantas e vasos de barro. Ela mora alí desde 1951. A rua era de terra, não havia água encanada, nada de eletricidade e só mais quatro casas em toda a rua. Mas ela não tinha medo ? Tinha medo sim, quando caíam raios do céu. Como conseguiam água ? O marido abrira um poço nos fundos. Manualmente ele tirava água com um balde de madeira. E sem luz ? Como era de noite ? Eles tomavam café às 18 horas e jantavam às 20. Lampiões. Ficavam na rua, conversando com quem aparecesse no caminho. O marido acendia um cigarro, ela cantarolava. Iam dormir com o som dos sapos e acordavam com sabiás. Mas o que a senhora fazia todo o dia ? Cozinhava, lavava, costurava, plantava. Com as mãos, à luz do sol, em seu próprio tempo.
Me despedí da velhinha sorridente. Ela falou para que eu aparecesse quando quisesse. Se lembrou de que eu morava lá perto, eu era para ela o moço dos cachorros. Fui acenando e desejando sentir como seria aquela rua de barro e de cheiro de café.
Sentí então : Ela nunca irá morrer.