O VIRUS DO TEMPO

Retirando a frase de seu contexto, e lhe dando outro sentido, um cara que escreve na Folha cita Nick Hornby : " este é o melhor tempo para quem gosta e se interessa por música". Sem dúvida que é ! Em nenhum outro momento eu teria acesso a tanta coisa ! De Cameron de la Isla à Marie Laforet; do blues mais obscuro ao pop mais despudorado, tudo pode ser conhecido, escutado e consumido. E lógicamente, prontamente esquecido.
Uma coisa muito estranha, e que jamais esperei, está ocorrendo : um vírus se espalhou entre pessoas com menos de vinte anos e com algum grau de informação e inconformismo ( os meninos não contam- tudo para eles é informação conformista ). Esses jovens são ferozmente saudosistas. Mas, ingenuamente, sentem saudade do que nunca conheceram. Idealizam.
Usam óculos grandes tipo Carnaby Street, calças modelo 70's e camisetas tipo rock'n'roll. Dançam como se dançava no Soho em 1967 e usam drogas que "expandem a mente", tipo Ken Kesey ou Ginsberg. Seus gurus são Che, Gandhi, Reich e Jung, e falam de Nietzsche como se ele fosse novo. O principal, escutam Led, Velvet, Sabbath e Iggy...
Desse modo, uma amiga minha de 20 anos adora Keaton e Murnau, e uma de 21 sente pena por não ter sido jovem em 1922. Outra queria ter sido fotógrafa de Warhol e outro queria ter pintado na Paris de 1900. Nunca o jovem foi tão saudosista ! O que aconteceu ?
Eu adoro Led ( embora não consiga mais o escutar. O Led só faz sentido enquanto vivemos no auge da euforia juvenil, depois é uma triste lembrança morta ), e ainda me emociono com Iggy e Velvet ( que são atemporais ). Mas eu vivi isso. Eu recordo deles alternativos, incompreendidos, como lembrança viva e maldita. Porém, quando um garoto de 15 anos tem por Dylan uma relação de guru e discípulo... bem, é como se nos meus 15 anos eu tentasse ser como Louis Armstrong ou Bing Crosby. Não dá !
Mas é aí que nasce o problema. O jovem informado vai escutar White Stripes, Primal Scream, Franz Ferdinand ou Artic Monkeys, e se tiver um pouco de senso perceberá que entre eles e o que se fazia quarenta anos atrás a diferença é quase nenhuma. Do primeiro disco dos Stones em 1964 para Sticky Fingers, seis anos mais tarde, a diferença é brutal. Mas entre algo gravado em 2003 e algo gravado hoje... onde a evolução ? Os Stooges de 1969 são tão diferentes de uma nova banda sueca de 2010 ? Iggy Pop, com 18 anos, em 2010, quarenta anos depois dos Stooges, seria um garoto em seu tempo. Mas Iggy em 1929 ( quarenta anos antes de sua época ) é impossível !!!!!
Quando eu era moleque me decepcionava com cada disco ( raro ) que conseguia comprar dos distantes anos 60. Eram cheios de chiados, mal gravados, não se ouvia a bateria. Ouvir o Cream, Yardbirds ou Kinks era um sacrifício. Mas veio o cd, e então veio o grunge que revitalizou as velharias. A molecada podia ouvir rock antigo com som de música nova. No cd dava para se comparar Ginger Baker com novos bateras, se podia finalmente ouvir direito Small Faces e Them. Tudo se reviu. Começaram então a compor novas músicas velhas e a montar modernas bandas retrô. O cd foi injusto com quem faz uma banda hoje : a informação mata toda novidade, o cara precisa concorrer com seus contemporâneos e ainda ser comparado com o passado que se tornou presente. É desumano. Cínicamente, o artista entrega os pontos. A repetição da repetição se refaz.
No cinema, com o dvd, a coisa é ainda pior. Um novo diretor podia chupar Renoir e Bresson à vontade. Onde assistir Renoir e Bresson ? Mas agora, nesta abençoada era de revivências, qualquer leigo conhece Renoir e Bresson. E esse jovem amante de cinema, que ao contrário de seu pai, pode ver TUDO e quantas vezes quiser, se torna um saudosista. Pois Renoir era antes um monte de manchas e riscos na tela, e hoje é, que bom!, um brilhante preto e branco. Mas a coisa é ainda mais complicada...
Harry Potter vive numa escola vitoriana cercado por magia medieval; a saga dos anéis já era coisa velha quando Plant gravou Stairway to Heaven; o Shreck é um ogro e Titanic é de um romantismo rosado típico da pior ópera dos idos de 1820. Se essa geração não é saudosista... e ainda vem Batman, com seu clima gótico/Alemanha, o Homem-Aranha, herói típico de 1964 e o eterno Bond, que teve como grande evolução diminuir o sexo e aumentar a violência ! Que moderno!!!!!
Leio que Paul Thomas Anderson, enquanto filmava Sangue Negro, assitia O Tesouro de Sierra Madre todas as noites. Foram sessenta vezes. Sierra é de 1948...
Tim Burton fez refilmagens de filmes velhos ( Planeta dos Macacos e Fábrica de Chocolate ), filmes de época ( Cavaleiro sem Cabeça e Sweeney Todd ), ficção científica antiquada ( Marte Ataca ), um poema de amor ao cinema antigo ( Ed Wood ) e outro a magia do tempo ( Peixe Grande ). Alice é a "nova" idéia.
Um filme sobre piratas, uma refilmagem de série de tv antiga, um filme independente gracinha que nada mais é que um filme hippie careta. Onde a novidade ? Mais um western que não dá certo, mais uma bio sobre alguém que viveu nos "bons tempos", mais um samurai...
Todd Haynes fazendo mais um filme sobre o passado, mais um Tarantino com cara de 1972.
Um filme inglês que imita o Scorsese do começo dos 70's, mais um musical fora de hora, um novo Bergman e um novo Cassavettes ( são os dois mais imitados hoje ). Um novo James Dean e uma nova Audrey. E Kane continua ganhando...
Que louco : as novas tecnologias trouxeram o passado para o presente e consequentemente sufocaram o futuro ! Se em 1959 existisse o dvd, as pessoas saberiam que Acossado de Godard era uma refilmagem "esperta" de velhos policiais baratos americanos. Com essa informação as pessoas veriam "Acossado" como o que ele é : excelente diversão, mas não como nova revolução.
A revolução acontece nos buracos negros da não-informação. No mundo onde o jovem sabe e olha tudo, a revolução se torna impossível, a originalidade torna-se inviável, a ingenuidade morre. A saudade daquilo que jamais existiu se faz rainha.
A minha foi a última geração "moderna". E falo isso com vergonha. Pensávamos que nunca mais haveriam bandas com guitarras, que ninguém nunca vestiria jeans e que tudo o que fora gravado antes de nossos vinte anos seria jogado ao lixo do esquecimento. Acreditávamos realmente que éramos a mais brilhante geração, os mais ousados, os mais doidos, os heróis do futuro. Queríamos zerar o mundo, começar de novo, esquecer. Sinto vergonha por termos sido tão pretensiosos e por termos desprezado tanta coisa boa ( odiávamos bandas que não mereciam ser odiadas ). Mas o tempo passou, rápido, e o que veio...
Suprema ironia : Nós e nossos filhos, hoje, idolatramos tudo aquilo que matamos. Eu não esperava...