HEROÍSMO HOJE

Byron escreve sobre um anjo caído, anjo do mal. Lúcifer. Um ser-coisa, que se guia pelo desejo de seu coração, o desejo de seguir o mal. Esse desejo o leva a absoluta solidão. Byron se via nesse anjo caído. Lord Byron viveu isso. E tombou na revolução grega, arma na mão, famoso em todo mundo, maldito na Inglaterra, voluntário pela causa da liberdade. Tinha 36 anos. Sua vida foi um tumulto de sexo, drogas e liberdade. E poemas endereçados aos céus.
Gauguin nasceu no Peru. Pais franceses, logo voltaram para a França. Paul se casou, teve filhos e enriqueceu como corretor da bolsa de valores. Pintava como hobby. Aos 40 anos, largou tudo, mulher e filhos, dinheiro e conforto. Passou a se dedicar exclusivamente à pintura. Viajou para o Tahiti. Defendeu a causa dos nativos contra os colonos franceses, apaixonou-se pelas jovens nativas nuas. Sentiu fome e muita dor. Vendeu quase nada e usava tintas ruins, telas ruins. Teve sifilis. Morreu no amado Tahiti.
Modigliani tinha uma absurda beleza. Nasceu em familia rica, no conforto do sangue azul italiano. Mas se apaixonou pela boemia. Largou tudo e foi viver em Paris. Rei dos bares de má fama, roubava pedras das ruas para esculpir. Enamorou-se de modelos-prostitutas. Namorou e viciou-se em absinto. Jeanne Hebuterne, jovem comportada, apaixonou-se por Modi. Tiveram uma filha. Mas o absinto cobra contas, e Modigliani pirou. Brigas, rompimentos, voltas. Ele morre jovem. Ela se atira pela janela em seguida. Nenhum pintor pintou nada tão erótico quanto Amedeo.
Rimbaud começou a escrever ainda criança. Tornou-se famoso entre os poetas franceses por isso e também por sua beleza. Verlaine, bem mais velho, larga tudo apaixonado por Rimbaud. Os dois viajam pela Europa inteira. A pé. Vivem juntos e são perseguidos pelo preconceito. Aos 17 anos Rimbaud escreve toda sua obra principal, que irá o imortalizar. Era o anúncio da sensibilidade do futuro. Larga Verlaine e vai para a Africa. Aos 19, sua carreira literária se encerra: nunca mais escreverá. Na nova vida, ele resolve ficar rico. Faz comércio de café, tráfico de armas, talvez até escravos. Endurece, cresce, torna-se um outro. Morre de gangrena, em algum buraco da selva. O que ele terá sentido ?
E há tanto mais para ser dito. 200 homens perdidos no Pólo Sul. Sem comida, sem abrigo, sem comunicação. Sobrevivem e são resgatados. Três anos depois.
Thor Heleyal atravessando o Pacífico numa balsa feita de papiro. Só. E consegue.
Jean Vigo dirigindo seu único filme deitado numa maca; morrendo de tuberculose. Termina a última tomada e morre. Deixa-nos uma obra-prima: Le Atalante.
Eddie Aikau se mandando para o fundo da tempestade para salvar náufragos. Com sua prancha, surfista famoso. Salva alguns e desaparece no mar.
Chuck Yeager voando pelo prazer de voar, indo mais rápido, mais livre, mais solitário.
O que é o heroísmo? Se sacrificar ? Por quem? Um soldado se sacrifica, é não é necessáriamente um herói. Então o que faz de um homem um herói ?
É aquele que cai na terra e segue seu desejo. Todo herói é um anjo caído. Que segue, sem se abalar, seu destino. Ele faz o que precisa ser feito e que só ele poderia fazer. Faz por sí mesmo, e como consequencia, afeta uma humanidade ao seu redor. Mas faz para satisfazer sua originalidade. Só ele sabe o que só ele deve e pode fazer. Todo herói está isolado.
O herói hoje está perdido não porque toda montanha foi conquistada ou todo mar rastreado. O que mata o heroísmo é que toda individualidade está cerceada, vigiada, acomodada num rótulo padrão. Byron seria um freak narcisista, Gauguin um irresponsável pedófilo, Rimbaud um giletão arrependido, Modigliani um playboy viciado, Aikau um cara que se deu mal, Yeager um caipira bronco, Mozart precisaria de um empresário melhor e Beethoven seria uma estrela psicótica. Thor teria cruzado o pacífico para vender os direitos do filme sobre sua vida. Rótulos para heróis. Rótulos de supermercado. Um herói precisa esquecer tudo isso : não se julgar, não se auto-analisar, não se corromper. Ele não mira um alvo definido, ele vai fundo no que sua alma quer. Seja o que for. Enxerga o fundo do escuro interior e sai para a vida, fazendo o que seu daimon ordenou. Sem se justificar, sem ser rotulado, sem pedir paz, sem desistir, sem se iludir. Jamais pensando em ser como os outros são, nunca como deveria ser. Um herói se desnuda, larga o supérfluo, não carrega malas, não tem garantias. Nada é menos heróico que um cartão de crédito, um GPS, um comprimido de Prozac. O herói tem como única garantia seu desejo. Seu desejo, não o de ninguém outro.
Cervantes escreveu Dom Quixote na prisão, longe de seu país, esquecido.
Shelley passou a vida lutando pela igualdade dos sexos e pela extrema liberdade em polìtica. E pelo ateísmo.
Tolstoi perdeu tudo por sua fazenda socialista, onde todos eram iguais.
O herói não almeja atingir fama. Ele faz porque TEM que ser feito.
Para entender o que é isso, assista O SOL É PARA TODOS, filme já analisado aqui. Tudo está lá: aquele é o único tipo de heroísmo que nos resta. E é belo, muito belo.