FABLES OF RECONSTRUCTION- REM

Posso ver. Em meio ao capinzal, há um barracão de blocos cinzas. Cercado pela chuva caindo e entupido de teias de aranhas. Posso ver. Há um vazio em todo redor e uma imensa coragem. Eu vou só. Jamais estive tão só. Aquele disco estava rodando. Era 1985 e minha vida era uma merda. Era 1985 todo mundo queria ser David Bowie ou Bryan Ferry. Todo mundo era cool e as meninas queriam namorar Sting. E O REM queria ser Robbie Robertson!!!!!! Caraca!!!!! Todo mundo queria ser moderno e eles eram Byrds e Flying Burritos !!!!!! Eles estavam no barracão, ao meu lado, eles eram comigo, eles tinham a faca que abria minha casca e estraçalhavam o meu medo. Eles me apaixonaram. Eram eu.
Gravaram FABLES OF RECONSTRUCTION na Inglaterra, com Joe Boyd, produtor de folk dos merry 60's. Mas o disco é Atlanta, é Mississipi, é do céu, do céu, do céu, do céu... No barracão cheio de teias e vinho eu me apaixonei por uma menina solitária como eu e como este disco é. Rodando ela e eles no meu coração, e rasgando minha carapaça e minha febre e traçando rastros de ódio e sendas de paixão e loucura. E o heroísmo de se ir contra. Sempre contra, pois quando eles se tornaram mainstream perderam o tesão. Que está aqui inteiro.
A capa do disco dá medo como dava o descampado. Mas há o som de tantos violões juntos e de milhares de guitarras de 6 cordas e de uma bateria pesada e Stipe está cantando rouco e parece estar dormindo ou talvez tenha morrido e tudo neste disco seja uma mensagem para quem já viu o inferno. Mas o meu barracão começa a ser aberto e as teias se vão e sinto pena das teias. Maldita década onde até quem não queria ser Bowie e Ferry queria ser poeta romântico e este disco é Rimbaud. Rimbaud viu a verdade.
Eu não sabia que a América podia ser tão profunda e eu não sabia que amar podia ser tão só. Mas eu sabia que tudo se resolve na estrada e o barracão desaba e a rua pede que eu vá com ela. Vou. Pois este disco é um milhão de estradas cruzadas. Como ele é toda uma sinfonia de cordas quando o mundo só escutava uma sinfonia de teclados. Falando de paixão todo o tempo. Falando como uma faca fala.
Lá bem no final do disco tem uma estranha que me aguarda. E nada tem a dizer a não ser que ela sabe que sou tão estranho quanto ela. E que nunca estaremos juntos como agora e aqui. E esta música, sobre amantes estranhos, chega a beira do absurdamente bonito e do magnificamente simples. E nada tem a dizer.
Ao final, uma canção para Wendell Gee. Cheiro de pinho e de café e frio de neve e cowboys que não sabem montar. E um banjo que vem como a mão quente de alguém. O REM alcança as alturas que só The Band alcançou um dia. Lá no alto, no ar claro, no absolutamente certo, no que é para sempre. Quando ainda se acreditava no ser para sempre. Quando acaba não termina. Fica. Isto fica. isto nunca vai mudar. Isto era, é, será. No mundo de Robertson, McGuinn, Parsons, Stills, Furay, Young, Dylan...