A sala quadrada de grandes janelas altas, onde aprendi a pintar, escrever e tocar flauta, hoje, tantos anos passados, é a biblioteca. Não deixa de haver justiça nisso. Nesse tempo todo vivi entre livros. Lá, trabalham dois ex-professores. Um deles, professor ao velho estilo, usa paletó e chapéu. Lecionava as " duas matérias mortas, tão mortas quanto são o latim e a caligrafia : história e filosofia ".
Não sei onde li que uma das tragédias do mundo contemporâneo é a desvalorização da experiência dos mais velhos. É claro que a maioria deles nada tem a dizer, a não ser reclamações da aposentadoria e raiva da vida. Mas este senhor tem muito a dizer.
Falo de matemática. Ela é uma coisa bela, eu sei. Mas ela jamais mostrou sua inteira beleza para mim. O velho diz que a beleza na matemática está na filosofia por detrás dela. Não é encontrar a solução, é entender o porque do problema.
Recordo Pitágoras, o começo de tudo, onde a matemática se torna um misticismo. Ele me diz duas coisas interessantes : a perfeição do ímpar ( basta a sí só ) e o Zero. Como pode, num mundo onde tudo é alguma coisa, alguém ter criado o conceito do zero, do nada. Como?
Ele salta então de Pitágoras para Martin Heidegger. E me dá uma aula.
A diferença básica do homem para outros seres é que o homem vê o vazio, o zero, o nada. Um animal doente sente dor, o homem teme o vazio. Toda angústia vem disso : tentamos compreender esse vazio, mas ele se faz incompreensível. O que éramos antes de nascer, eis a idéia de vazio; o que virá depois, vazio.
Colocado entre esses dois zeros, cabe ao homem duas escolhas : construir sua essência ou viver na existência pura. Nós, únicos seres com livre escolha, podemos adquirir conhecimento, expandindo a vida, absorvendo outros pensamentos, nos tornando sábios. Ou viver inconscientes, prendendo-se à rotina do ir e vir sem fim.
É preciso ver o vazio para se erguer algo de verdadeiro em sua essência. Fazer a ponte entre os dois zeros. Ou negar sua realidade e viver na ilusão anti-vazio, que é o pior dos vazios.
O homem religioso constrói sua essência a partir de Deus. Ele sente algo em sí que não é só seu, é de todos. O ateu constrói sua essência na certeza de ser absoluto dono de sí mesmo : tudo que existe nele é dele mesmo. O que ele faz é sua responsabilidade.
Falo então que existe em todo religioso algo de " tirar o corpo fora, de se isentar de responsabilidade ", e no ateu " um imenso orgulho de se ser dono de sí ". Vejo um como "ovelha" e o outro como "rei da vaidade".
Que engraçado : na sala onde eu admirava, confuso, as pernas da professora em minissaias e meias arrastão, hoje ouço uma aula de existência e essência.
O homem constrói o seu eu todo o dia. E passa todo o tempo com o medo de ver esse eu desaparecer no vazio. Essa é a grande descoberta humana: o zero existe. E neste mundo de imagens, pressa, barulho, vozes, modas, distrações, tentamos ansiosamente negar qualquer tipo de reflexão ou consciência. Não construímos nosso eu, moldamos nossa vida à distração. Mas o abismo está ao lado, sabemos disso. Voltamos as costas, não o encaramos, fugimos e nos tornamos fáceis e inocentes vítimas do nada, do vácuo, da não-história, do zero infinito.
O velho pensa que fui bom aluno. Ele não sabe o quanto fui vagabundo. Diz ele que sou um pensador nato- sempre querendo saber. Penso que sou um preguiçoso, sempre pensando. Nos despedimos e ele ergue seu chapéu marrom. Desde cedo, já naquela escola, o vazio foi meu compadre mais constante. Ele me assistia no jardim empoeirado onde eu comia maçã com laranja. Acenou sua mão feita de nada quando andei para outras escolas e outras professoras bonitas. Esteve comigo nas noites de frio e nas tardes de ondas grandes. E me fez procurar esse velho de paletó alinhado.
A sala de aula, hoje biblioteca, é um zero em sí.