ZARATHUSTRA, A CABALA, O SUFISMO XIITA IRANIANO, OS GNÓSTICOS, ANJOS, PLATÃO E OS 40 DIAS

A tentação é imensa. Tudo se resumindo a química. Tudo estará explicado. Visões serão desequilibrios de componentes químicos. A depressão, um desarranjo, um tipo de diabetes cerebral. Xamãs são esquisofrênicos, e poetas, adultos presos na infância. O amor é desejo sexual e todo romantismo uma moralização de um instinto. Regulamos a vida revisando o motor. Domamos a dor via comprimido. Tudo é o que podemos ver, ou mais que isso, nada há fora da ciência. E tudo que é científico, é produto vendável.
Em 1986 eu repudiei o mundo sensitivo. Tudo que era visível assustava e tudo que era real perdera seu valor. O mundo se tornara novo para mim, e assustador. Como na época não existia a popularização da síndrome do pânico, eu comecei a escrever. Textos em que via na crise a chance de renascimento. Eu acreditava estar nascendo. Todos os dias eram como partos complicados e tudo que eu via, lia, sentia, tinha uma ressonância de eternidade. De maravilhamento e de pavor. Um constante perigo. Alguma coisa brotava. Espíritas e umbandistas falavam em encosto. Nunca me convenceu. Simples demais. Procurei a psicanálise. Descobri que eu odiava e amava meu pai, que todo medo era frustração sexual, que eu estava num processo de amadurecimento. Me acalmei. Mas o medo permanecia. Menos misterioso. Mais real. E intocável. Descobriram, por acaso, que anti-depressivos curavam a síndrome. Tomei-os. O medo foi domesticado. Não era um novo ser que nascia. Não era sexo. Era uma simples e vulgar doença. Um problema de quimica cerebral. Tudo aquilo que escrevi e pensei no nascer da crise,mera fuga e fantasia.
Passei a ter adoração por psiquiatras. Gurus com soluções imediatas. Adaptação sem dor. Deliciosamente me tornei o racionalista radical. Religião é medo da morte. Arte é tentativa de ser eterno. Amor é jogo de sedução narcisista. A vida é um acaso quimico. Uma sopa que deu certo. E o homem, um macaco que enlouqueceu. Pó entre pó. Cheio de respostas prontas, me sentei no trono do adulto, rindo dos ingênuos, dos amantes, dos infantis. E é assim desde 1999. Porém há uma armadilha nisso tudo : me livrei do medo desconhecido, e com ele, perdi o encanto de viver. Não há mistério. Não há poesia.
Mas houve uma noite. Cheia de tola ingenuidade. Em que me sentei ao lado de meu amor. Aos pés da árvore que plantei em minha infância. Ficamos, eu e ela, em silêncio, como dois nadas que nada desejam, quietos e abraçados, na madrugada fria, sentados na grama e encostados um no outro, assistidos pela árvore grande. Uma promessa foi feita sem que nada fosse dito: éramos um. O que aconteceu ali eu nunca soube e nem saberei.
E houve um amanhecer. Frio e sem porque. Deitado sobre uma rocha, imensa e repleta de cracas, eu escutava o mar. Violento, barulhento, ele respingava ao meu redor e se tornava prata, amanhecia. Alguém dormia a meu lado. Mas eu estava só. Reencontrava o mar. Alguma coisa aconteceu naquela rocha e naquela manhã fria.
Numa tarde de fim de solidão. Eu descobri a poesia. Yeats se desvendava inteiro. Eu compreendia e absorvia tudo. Toda imagem fazia sentido. Sua voz se tornava a minha. Eu estava no paraíso. Sua torre, sua Irlanda, sua musa, tudo era meu pois naquela tarde eu era ele. Meu Daimon falava comigo. E eu o ouvia.
Desde 1999 não sei o que é esse paraíso. Com o final da dor, foi-se o extase. O que nascia em mim, nunca mais nasceu. O que se comunicava em mim, calou-se. A voz de meu DAIMON foi perdida. A quimica me deu confiança e satisfação. Fez de mim um homem de meu tempo. Contente, nunca feliz. Satisfeito, jamais realizado.
Harold Bloom escreveu em 1995 um livro. Bloom, professor de Yale, maior critico literário vivo, esteve em 1994 numa grave depressão. O livro do qual agora falo é o relato do que nasceu após esse período.
"Presságios do Milênio. Sonhos, anjos e imortalidade". Esse é o nome do livro. Cheio de erudição, e criticando com ferocidade a New-Age, o livro fala exatamente disso : anjos, sonhos e vida pós-morte. Cabala, sufismo xiita, Jesus, mórmons, Freud e Nietzsche. Xamanismo e Shakespeare.
Primeiro dado : a língua da poesia é a língua da eternidade. Shakespeare, Milton, Blake, Marlowe têm a voz de outro mundo. Quando lemos em voz alta Shakespeare, estamos falando a linguagem além das aparencias, além da linguagem. Falamos a verdade. A mais verdadeira das mensagens, o que está além do tempo. Vozes de um tempo em que o extraordinário era comum.
Depois, a partir do século XIX , a ciencia se impõe como única verdade. Esse é um fato tão acachapante que eu- Tony Roxy- me sinto um perfeito idiota em ir contra ela. É tão grande essa tirania de único partido, que falar em Deus faz de mim menos inteligente, e ousar dizer a palavra anjo, faz de minha escrita, a escrita de uma besta. Por mais que saibamos que esta realidade não é a única realidade, nos é impossível sair do universo de causa e efeito. Tudo para nós precisará ser visto, pesado e analisado. Vivemos numa única realidade. Esta tela, este botão, este eu em mim.
Nesse mundo, Deus não pode existir. Não podemos ver milagres. Como olhar aquilo que não queremos olhar ? Como perceber o que nos é indiferente ? Como ouvir uma voz que não mais entendemos? Jogamos fora um dom que era nosso mais precioso. Ninguém está aqui por nós.
Bloom fala então do nascimento dos anjos. Sim. Do nascimento dos anjos no Irã, na época do primeiro grande profeta ocidental- Zarathustra. Que mundo era esse onde as pessoas viam anjos ? Onde tudo era um milagre ? Sim, uma parte de mim diz : Claro que tudo era milagre! Eles de nada sabiam! Ok... e nós sabemos o que ? A luz do sol faz a flor se abrir. Ela é fertilizada pelas abelhas. Mas isso, se eu souber ver, é um milagre. Ou será uma máquina funcional. Ciência ou poesia. Bloom explica o que, para os sufistas xiitas do Irã de hoje, é um anjo. - Temos 3 seres em nós : a carne, que come, vive e morre. A consciencia, que apreende, enxerga e fala. E uma fagulha divina, o anjo em nós. Ele se manifesta dentro do mais profundo de nós mesmos, ele fala em momentos de aterradora crise, ou do mais desenfreado extase. É nosso rosto da eternidade. Ele nunca muda, pois jamais se fez, não pode morrer, pois nunca nasceu. Observe, este livro foi escrito antes do atentado de 2001. Bloom diz que a ruptura da Europa e América com a tradição Iraniana é a maior tragédia espiritual do ocidente. Voce lê este livro e vê o quanto somos enganados, o quanto existe de preconceito contra a beleza do pensamento do Irã e Iraque, berço de toda idéia que conhecemos de Deus, vida e eternidade.
Beleza que prossegue na Cabala. Bloom, judeu, discorre maravilhosamente sobre os sábios estudiosos da Cabala. Um pensamento fantástico : tudo o que é dito se torna angelical ( e saiba, existem anjos muito maus ). A Cabala, centro de sabedoria, prega a divindade do homem, homem que não foi criado por Deus, que nasceu com Deus. Temos o livre arbitrio de fazer nosso futuro e de modificar nosso passado, pois nossa palavra é eterna, o que falamos dura para sempre.
Bloom discorre sobre a poesia, língua angelical. Cita Shakespeare, como ser ligado ao além-tempo, dono do vocabulário celestial, assim como, em menor escala, Blake, Milton, Marlowe e mais recentemente, e em brilho cada vez menor, Yeats, Eliot, Pessoa, Rilke.
Harold Bloom é um dos maiores fãs de Freud que existem, mas ele diz, com razão, que Freud é mal lido e mal usado. E o culpado por isso é o próprio Freud. Sigmund sonhava em ser um Darwin do séculoXX. Não foi e não é. Ele é um Montaigne, um Nietzsche, um Emerson. Um homem que escreveu um diário, genial, sobre sí mesmo. Não criou uma ciência, escreveu magnifica prosa. A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS é o maior e mais influente livro do séculoXX, e esse livro amaldiçoou toda nossa época.
Freud tinha pavor do sonho. Observe, para Freud não existe o futuro. Os sonhos foram formados na infancia, e passamos toda a vida reelaborando o material criado nessa infancia. Bloom cita risiveis interpretações de Freud sobre sonhos e mostra como ele temia ver no sonho qualquer sinal de transcendencia ou de aviso sobre o futuro. Nosso tempo, triste sina, embarcou nessa, pois Freud trouxe a promessa da racionalidade que 1900 queria - tudo se explica pela sexualidade reprimida. Freud, e seus seguidores, se tornaram uma espécie de pai-todo-poderoso, guiando o pobre analisando para suas respostas prontas. Mesmo assim, Bloom admira Freud, pela genial obra de ficção construida.
O livro continua, cada vez mais fascinante ( e com apenas 150 páginas de saber e erudição ). Ficamos sabendo sobre Tiago, o irmão de Jesus, do porque São Paulo o ter derrotado, se tornando a voz oficial do catolicismo. Descobrimos a sabedoria dos mórmons, o que eles pensam e porque vivem como vivem; e vem um pensamento fantástico : Jesus na cruz sentiu um extase. Não houve dor, houve a iluminação da morte maravilhosa, do renascimento. Para os muçulmanos, Jesus foi um anjo, como Gabriel.
Vem um forte capítulo sobre o xamanismo. O puro, com origem na Mongólia e que migrou para o Irã ( sempre o Irã ). Voce tem duas escolhas : o xamã é um esquizofrenico, ou ele é um homem em contato com sua verdadeira face. Um cogumelo pode fazer de voce um idiota. Mas para o xamã, não. Lhe dá visões, conselhos, sabedoria. Lhe faz ir além do tempo, ou, antes do tempo. Como na crucificação de Jesus, o xamã chega à morte, e volta, trazendo sua mensagem.
O livro tem muito, muito mais. É necessário ler. Fala dos testemunhos de quem quase morreu e viu a famosa "luz" ( desancando com todos esses testemunhos e destruindo os livrinhos Nova Era ) e explicando o que seria o tal de corpo astral ( via Cabala e Xiitas ). Fala de quem viu Ets e Ovnis e porque esses testemunhos são ridiculos. E do porque os testemunhos de quem viu anjos e demonios na Palestina de 1500 A/C são não apenas possíveis, como provavelmente corretos.
Para lhes dar água na boca, cito a frase de abertura do livro ( tirada de Lawrence Durrel, grande viajante e autor ingles do século XX ) :
"O homem está numa armadilha...e a bondade de nada lhe vale na nova ordem. Ninguém mais liga para isso, de uma maneira ou de outra. Bem e mal, pessimismo e otimismo- são uma questão de grupo sanguineo, não de disposição angélica. Quem algum dia se interessava e cuidava de nós, quem se preocupava com nosso destino e do mundo, foi substituido por outro que se regozija com nossa servidão à matéria e as partes mais baixas de nossa natureza." Expulsamos os anjos de nossa vida. Mas eles não existem fora de nós. Portanto, nós reprimimos aquilo que temos de mais verdadeiro, calamos a voz divina em nós. Os expulsamos por não podermos ver, pesar e medir esse anjo ( e aceitmaos tanta teoria que nunca foi pesada, medida e vista ). A ciencia venceu. E isso é inegável. Esmagou qualquer possibilidade de qualquer outra forma de entendimento. Nos anestesiou.
E vemos, por fim, que passando pelos judeus, pelos poetas provençais, pelos primeiros cristãos, pelos mórmons, pelos sufistas, pelo platonismo;em todos há essa busca, a busca do eu-angélico, do eu-além do tempo, da parte nossa que não é só nossa, é da vida; do melhor-eu. O anjo.
Tive vislumbres desse anjo. Me aterrorizou em momentos de pânico. Me maravilhou em tardes de poesia. Ele me acariciou quando estive feliz e mostrou seu rosto para meu amor, que o viu sem o saber, quando mais a amei. Foi meu balbuciar ao nascer e esteve conduzindo meus sonhos mais simples. Mas se foi, se escondeu no escuro em mim. Se escondeu quando sorri superior, vulgarizando a vida e explicando facilmente o inexplicável. Negando o verdadeiro em mim.
Por fim, há um capítulo no livro sobre o amor. Quando voce olha para seu amor e vê nesse amor o mais misterioso conhecimento. Quando voce lê esse corpo e vê nele o que existe de eternidade na vida. Então não é apenas sexo. É para sempre.