o sagrado e o profano

Existe alguma coisa sagrada em sua vida ? Voce sabe o que significa ?
Lendo o livro, duro e árido, de Margaret Atwood, tomo consciencia do que significa ter algo de verdadeiramente sagrado na vida. É aquilo que não foi profanado. Aquilo que não foi tocado, dissecado, desvirginado, vulgarizado. O que mantém seu mistério, seu encanto, seu caráter além, ou pré, razão. Sem isso, sem algo que nos faça ter esse contato, nos tornamos maquininhas vazias, corpos assassinos, mentes entorpecidas. A vida perde a luz.
Nada é ou pode ser mais sagrado que a própria vida. Quando matamos, destruímos tudo o que existe de encantador e perfeito. Mas atente : o homem sempre foi um matador. Porém, existe uma imensa diferença entre matar e MATAR.
Existe o matar consciente. Em que se percebe toda a dor e tudo o que há de trágico e inevitável naquele momento. É a morte do adversário samurai, do soldado inimigo morto no olho-a-olho, do executado em praça pública. Enxerga-se algo de ritualístico na vida. A inevitabilidade da morte. O horror que leva à transcendencia.
Existe o matar por necessidade. Para comer. Sobreviver. Agradecer, aos deuses e à própria vítima, a boa fortuna de ter caçado, encontrado. Minha vida deve sua existencia a sua vida. Vida alimentando vida.
O arrancar vida da vida. Decepar um fruto da árvore que lhe é mãe. Arrancar comida do solo que lhe é pai. Esperar o amadurecimento. Agradecer pela chuva. Pelo sol.
Tudo isso, tão simples, foi profanado. Voce mata na guerra como se guerra fosse virtual. Mortes na tela de video-game. Voce mata o assassino em cubículos isolados, onde um número é higienicamente apagado. Faz um aborto como se aquilo fosse uma simples e limpa extração dentária, um excesso de gordura eliminada. Mata milhões de animais, todos os dias, sem olhar seu olho, sem ouvir seus berros, sem conhecer e agradecer por seu sacrifício. É poupado do horror e perde o sagrado.
Todos os mares e todas as ilhas foram desvirginadas. Todas as montanhas estupradas. Não há um bosque onde um idiota não tenha ido caçar ( caçar para dar tiros, não para comer), ou se exibir em esportes barulhentos e imundos. Tudo foi profanado.
Teu corpo foi dissecado em vida, tua mente penetrada e exposta, teu sexo transformado em piada e em produto, tua religião falsificada. Sua vida e minha vida e a vida de todo bicho foi dessacralizada.Porque? - Para que possamos destruir e dormir, para que possamos assassinar em massa e engolir, para que possamos usar sem pensar. A vida se torna, desse modo, menos, muito menos que poderia e deveria ser. Se torna mecânica. Herdamos tédio, vazio e esterilidade.
Uma árvore, pelo menos uma árvore. Que seja só minha. Que tenha sido do pai de meu pai. E que eu saiba que será do filho de meu filho. Uma árvore que me dê o prazer de agradecer por sua existencia e que me permita crer no sagrado de sua realidade. Não profanada. Intacta.
Um lago onde o tempo tenha cessado. E eu me sinta parte dele e não seu senhor. Onde eu esqueça meu nome. E nada saiba sobre nada. Onde mergulhe em seu lodo e enxergue o que sempre desejei e jamais consegui. Um lago sagrado.
Animais que não me temam. E que não sejam meus escravos. Que existam intocados. Sem função nenhuma. Exibindo a vida- cruel e certeira- como ela sempre é, foi e precisa ser. Sagrados animais.
Eis aqui o segredo. Distantes dos animais, sem assistir nascimentos e mortes, comprando carne morta e ovos estéreis, nos tornamos distantes da vida não racional, da vida não planejada, da vida não profanada, do sagrado-eterno-imutável. Do ciclo, da roda, da magia.
Sei que tenho coisas sagradas. Lugares só meus a que sempre retorno. O triste é que dois deles foram profanados....não os sinto mais como sagrados. Perderam a ligação com o atemporal. Estão mortos. Foram derrubados e refeitos. Não dizem mais nada.
Um pouco de nós mesmos foi com eles.