As deusas da literatura têm sido generosas com suas seguidoras. Iris Murdoch, Doris Lessing, Muriel Spark, Margueritte Yourcenar, e a melhor delas, Margaret Atwood, têm abrilhantado a literatura destes últimos 30 anos. Atwood é canadense e era ela, ao invés de Lessing, que deveria ter levado o Nobel 2006. É opinião geral : talvez ela seja agora, com a morte de Sebald, a maior escrita deste inicio de século. Sua escrita é seca, curta, direta, pouco saborosa, nada rica. Mas seus pensamentos são profundos, simbólicos e desvendam claramente o que significa ser mulher. ( Ou o que significa não ser homem. )
O Lago Sagrado é seu segundo livro, lançado em 1972, tendo causado muita impressão na época. Alberto Manguel o considera mágico e eu sempre o procurei nos sebos. Atwood tem 4 livros em catálogo, mas não este. Vamos ao tema .
Dois casais de namorados vão ao norte do Quebec. Para procurar o pai da narradora, que sumiu por lá. O namorado, Joe, é um calado escultor fracassado. David é um esquerdista, que vive chamando os americanos de porcos fascistas. A garota de David é Anna, que é obcecada pela aparência, se maquiando ao acordar e usando o sexo como produto de troca. Com elementos tão ralos, Atwood tece uma das histórias mais assustadoras que já lí.
O tema é a volta à natureza, e somos testemunhas da transformação da narradora : ela começa a se tornar uma mulher-selvagem, uma quase deusa-natureza, uma coisa-parte-do-tudo, um ser além-tempo. No começo ela não exita em espetar sapos vivos em iscas para pesca; no final, sentimos que ela é o sapo, o peixe e o lago.
O livro descreve tudo isso com maravilhosa precisão. Nos assustamos porque mudamos com ela, vemos o que ela vê e sentimos sua desintegração. Mas há mais coisas : o livro nos joga na cara a falsa disputa em que o amor se tornou, a americanização do mundo ( fazendo de todos, sem que o percebam "americanos" ), a indiferença com a morte, a voracidade sem sentido. E o fosso que existe entre "americanos" e os não "americanos".
Cito algumas frases de Atwood :
" Tudo o que valorizo nele é físico. O resto é desconhecido, desagradável ou ridículo. Não ligo para seu temperamento."
" Não sou contra o corpo ou a cabeça, só contra o pescoço. Cria a ilusão de que corpo e cabeça estão separados "
" Amor sem medo e sexo sem riscos. Quase conseguiram nos fazer crer que isso fosse possível."
" Ela não podia ser domesticada, comida ou treinada para falar. A única relação possível com ela era matá-la. Por isso matavam as garças e as penduravam em cruzes, como Cristos. Alimento, escravo ou cadáver : opções que os animais tinham."
" Não importa de que país sejam, são americanos. São o que nos espera. No que estamos nos transformando. São como um vírus que ataca o cérebro. Atacam por dentro, quem tem a doença não percebe. "
" E a outra garça, destruída e pendurada numa árvore. Se morrera de boa vontade, consentindo, se Cristo morrera de boa vontade, qualquer coisa que sofra e morra em vez de nós, é Cristo. Se os americanos não matassem aves e peixes, nós seríamos os mortos. Os animais morrem para que possamos viver. Os caçadores do outono matando as corças, isto também é Cristo. E nós as comemos enlatadas ou de outro modo: somos comedores da morte, a carne enlatada de Cristo ressuscitando dentro de nós, concedendo-nos a vida. Mas nós nos recusamos a venerar. O corpo venera com sangue e músculos, mas a cabeça é avara, consome e não agradece."
" Os caixões foram inventados para trancar os mortos. Não permitem que eles se transformem em outra coisa, flores, raízes, sementes."
Nos últimos capítulos deste originalíssimo livro, a personagem abandona tudo que tenha sido tocado pelo homem : toda pegada, todo metal, toda trilha. Torna-se algo entre animal e vegetal, cheia de poder, cheia de mutismo. Esquece das palavras, dos nomes, e magistralmente, prepara-se para retornar, sem planos, sem passado nenhum, sem uma narrativa.
Margaret Atwood não escreveu aqui uma obra-prima. Estéticamente o livro não se sustenta. Mas registrou um testemunho visceral, claro, límpido, daquilo que significa a vida, daquilo que seria um retorno a origem, e do que é ser mulher. Deve ser lido por qualquer homem com um mínimo de inteligência, e por toda mulher que tenha intuído qual sua sagrada missão.