Na maior parte do tempo fomos caçadores. "Caçávamos" qualquer coisa que pudesse ser capturada. Insetos, filhotes, carniça, crustáceos. Andávamos muito para conseguir esse alimento. Nosso corpo foi se tornando o que é. Feito para andar e olhar, andar e olhar.
Mas um dia alguém plantou e então paramos de andar. E foi nesse momento que alguma coisa se partiu em nós. Passamos a esperar. Esperar pelo crescimento da planta, pela chuva, pela mudança de clima. Não íamos mais atrás do bom clima, esperávamos por ele. Começamos a olhar para a paisagem, não como caçadores; como simples observadores que matam o tempo. O movimento das nuvens, as cheias dos rios, a aproximação de forasteiros. Sementes foram acumuladas, terras acumuladas, cães treinados e o resto voce sabe : a contagem de grãos dando na matemática e a cidade se desenvolvendo como fortaleza contra o roubo de terra.
Mas o que me interessa é outra coisa. Começamos nessa hora a nos divorciar daquilo que a vida realmente é. Começamos a criar conceitos que não existem na vida. Ao observar a semente, se regada e cuidada, brotar e crescer, passamos a crer na justiça da vida. Se voce planta voce colhe- maçã dará maçã, em março irá chover, todo verão será quente- para sempre será assim.
Mas não é.
A natureza não é justa. Às vezes não chove em março.
Um leão mata um filhote de zebra e o come vivo. Uma enchente leva o que estiver por perto. Um filhote não oferece seu alimento ao irmão mais magro. Uma estrela explode sem haver qualquer senso de justiça nisso. Mas nós passamos todo o tempo querendo encontrar um sinal de justiça, de lógica em tudo que acontece.
Que sentido? O único sentido é o de que a vida tenta permanecer viva e que toda vida se alimenta da morte ( quando voce come uma alface ela precisou ser arrancada e morta, sabia ? ). E sua gripe foi curada com a morte de um inocente virus que tentava viver.
Se seu amigo morreu aos 17 anos, se um país aniquilou um outro, se sua esposa se foi mesmo voce sendo tão bacana, se seu patrão sumiu com o dinheiro da empresa... não pense em justiça. Nada disso tem a ver com o mundo agrícola onde o limão dá limão e se plantarmos colhemos. A natureza continua sendo o mundo em que fomos criados : um bosque fechado, onde andamos eretos, olhos arregalados, procurando não ser atacados e atacar algo mais fraco.
Para quem conheceu o mundo de onde vim, pensar assim é mais natural. Sou de um tempo onde se caçavam passarinhos com estilingue. Assistí cães lutarem na rua por fêmeas, gatos brincarem cruelmente com ratos. Toda casa, inclusive as mansões, tinham horta. Nelas nós tomávamos consciência dessa abstração criada pela agricultura : o tempo. Eu olhava minha mãe vir da feira, frangos vivos enrolados em jornal com a cabeça para baixo. Ela os matava com a indiferença de quem abre um pacote de arroz. Eu adorava ver o coração ser arrancado das tripas, quente e ainda pulsando. Cruel ? Claro que é. Me revolta tudo isso. Hoje minha mãe não consegue matar uma barata. Mas o que é a floresta que voce tanto ama ? O que fazem os índios inocentes ? Os africanos da savana ?
Esse caçador grita em nós e reprimido dá tiros a esmo do alto de uma escola, atropela bebados nas avenidas, luta vale tudo em ginásios ou dá tiros virtuais em telas coloridas. Esse caçador entende a vida real melhor que o agricultor, que o filósofo, que o artista. Ele caminha e procura. Não inventa motivos para agir, éticas, símbolos, enrolações.
Sua religião pede apenas por mais caça, seu casamento é desejo de procriar, sua arte é chamamento para viver.
O homem agricultor, que planta e espera colher, ainda é, mesmo após séculos de revolução industrial, o predominante em nosso modo ilusório de ver o mundo. Mas talvez surja um tipo de humano ainda, tolamente, mais distante da vida. Um corcunda apertador de botões. Com olhos que só percebem imagens luminosas e ouvidos que apenas existem se plugados. Um homem que só entenderá o tempo se ele puder ser acelerado; desligado totalmente de tudo que for feito de pedra, madeira ou barro. Deletando pensamentos inúteis, emoções sem razão e maus fluidos.
Felizmente não estarei presente nesse mundo.