O tempo e o viver hoje

Quando os primeiros trens rodaram pelos campos ingleses, as pessoas enlouqueciam com seus 20 quilômetros horários. Sentiam que sua percepção de espaço e de tempo se modificava. A vida não poderia ser a mesma de antes, mas seus sentidos eram os de sempre.
Veio o cinema, onde tudo acontece depressa e mesmo o tédio é editado para se parecer com um tipo de " tédio com interesse ". Surgiu a tv e então tínhamos dentro da sala e do quarto a noção do tempo fragmentado, sem silêncio nenhum, sem reflexão ou morosidade. E a possibilidade de fugir de tudo que significasse perigo, estranhamento, chatice.
Mas nossa alma e nosso cérebro não acompanharam essa velocidade. A Terra continua nos dando 24 horas para dormir e viver, continuamos a envelhecer e morrer e a gravidez dura 9 meses. Porém estamos eletrizados numa adrenalina visual, num hipnotismo anti-relaxante, numa euforia deprimida e deprimente. O ritmo da vida ( estações, marés, ventos, crescimento das plantas, cios dos animais ) se divorciou do ritmo que nós pensamos ou procuramos ter. É como se fôssemos cavalos que pensam ser Ferraris e vivem obrigados a ser nem o animal e nunca a máquina.
É impossível imaginar que cem anos atrás era possível conhecer apenas a velocidade de locomoção de um animal. Que uma pessoa pudesse jamais ter visto qualquer imagem do espaço, de um massacre ou de vísceras expostas. Hoje podemos assistir tudo, mas fixamos e vivenciamos quase nada.
A descoberta do sexo era um terrível mistério, hoje ele é banalizado em horas e horas de vídeos pornôs que transformam o ato sexual em ginástica exibicionista e levemente tediosa.
E o tempo, o mais natural fator de existência, passa a ser um inimigo, que não pode ser editado, retardado, deletado, preenchido, como ele é no cinema ou na tv. Perdemos o dom da paciência, não dançamos conforme as estações e tememos sua passagem. Minha rua não existe mais, minha escola foi demolida, meus amigos moram em Paris e minha ex mudou seu rosto com vinte cirurgias e se tornou uma boneca que não me comove mais.
Onde eu fico ? O que recorda e afirma o que sou ? Meus rastros foram todos varridos. Editados. Mudaram de canal e estou fora do ar. É esta a vida possível : a absoluta perplexidade, a total descartabilidade.