UM BICHINHO, UM PERIGO, UMA MULHER
Descobri a atriz sueca Harriet Andersson há apenas dois mêses.
Acho incrível ainda ser possível, após tanto tempo assistindo e estudando filmes clássicos, ainda existirem tesouros para serem descobertos.
Harriet iniciou sua carreira em 1951, e vou comentar exatamente esse começo através de 2 filmes : Monika e o desejo, Noites de circo.
Em Monika ela é uma adolescente tosca, com modos e aparencia de camponesa. Ela foge para uma ilha com seu tolo namorado. Engravida, tem um filho, se casam, trai o garoto.
Brigitte Bardot ficou famosa por representar, pela primeira vez, um tipo de mulher sexy que não era uma vagabunda e nem uma musa etérea. BB era uma garota saudável. Com desejos. Ela não fazia um tipo, ela era uma mulher.
Como Goddard escreveu nos anos 60, Harriet em Monika fez isso antes. Neste filme ela não é culpada por nada, não é boazinha, não faz pose de diva, ela é simplesmente uma mulher que deseja sexo. E consegue.
Sua sensualidade chega a ser hipnotizante, e ela tem uma cena de nú ( em 1953 ! ), do mesmo tipo das que BB faria. Ela não posa nua, ela caminha nua.
Bonita, belíssima ela é ( embora para os padrões dos meninos de hoje, ela seja fêmea demais ), mas é uma beleza real, sem artifício, animal.
Num de seus livros Bergman chama Harriet de um dos poucos gênios que o cinema já conheceu. Note bem, Bergman chama Harriet, uma atriz, de gênio. Eu concordo. Porquê?
Hepburn e Bette Davis foram as melhores atrizes que o cinema já viu, mas não eram geniais. Elas faziam tudo com arte e carisma, mas não criavam, não arriscavam. O gênio arrisca, faz o novo, tenta, procura e pode até ser ridículo. Brando era gênio. Giulieta Masina era. E Harriet.
O jovem Goddard nos 50, ainda crítico dos Cahiers, disse que Monika tem o mais belo plano do cinema. É quando, em meio a um diálogo, Harriet se abstrai da conversa e encara de frente a lente da câmera. Ela sai do filme, e como nossa cúmplice, nos encara. Nos tornamos seus amigos, olhamos sua alma, compreendemos Monika e participamos da genialidade.
Goddard faria isso com Ana Karina em diversas vezes, mas aquela foi a primeira vez que um ator sai da cena e encara a platéia ( não como Groucho, que nos olhava sendo Groucho e comentava o filme. Não. Harriet nos olha como Harriet ).
O filme em sí não é um dos grandes Bergman. É apenas isso, um solo de Harriet.
Noites de Circo, feito dois anos depois, é um filme melhor. De uma amargura sem saída, com algumas cenas belíssimas ( o perfeccionismo visual de Bergman é inigualável ).
Um velho dono de circo namora uma amazona ( Harriet Andersson ). Cansado da miséria, ele tenta voltar a ex-esposa, mas é recusado. Ela se envolve com ator rico e esnobe, é humilhada. Os dois, o velho e ela, acabam juntos e derrotados. Apesar desse tema árido, o filme é fácil de assistir, jamais enfadonho e muito bonito sem parecer afetado.
Harriet marca muito, como Ana, a amazona, dando seu show de total sensualidade, parecendo um bichinho mimado, depois uma menina sexy e então, uma camponesa vulgar.
Em tempo, mais um toque:
Mesmo nesses secundários filmes de Bergman, notamos com facilidade algo de original, de único, em cada take, em cada cena. Autoridade. Não houve diretor que passasse mais autoridade. Aquela impressão de que ele sabe do que está falando, que ele sabe segredos, pode nos ensinar a viver, pode desvendar a vida.
No cinema de hoje, a ambição máxima é ser um novo Spielberg, um novo Scorsese. Sinto falta da verdadeira ambição. A de ser um novo Bergman.