houve uma vez um verão

HOUVE UMA VEZ UM VERÃO

Como alguém podia viver com 6 canais de tv.
Só seis!
Desliguei e fui pra rua.
Andei de bicicleta até escurecer.
As 19, fui jogar bola com meus amigos japas: Celso, Nelson, Hideo, Donato, Hugo e Luis ( sempre há um Luis na colonia ).
Voltei pra casa às 22, o joelho ralado, morto de cansado.
No quarto, terminei de montar o planador da Revell que vou soltar amanhã.
Moro de frente à tv Bandeirantes.
Na verdade, são 200 metros até a tv.
Acordo e levo o planador.
Faz sol. Lá bem longe, posso ver o relógio do conjunto nacional, na Paulista.
Ele voa! Ele voa! Ele voa!
Meu primo me leva a nossa lagoa. Vamos ver os caranguejos e nadar pelados.
Vemos caranguejos e nadamos pelados.
Ao voltar pra casa, posso comer um boi.
Na escola, jogamos bolinha de gude, futebol, queimada.
Mato as últimas aulas, e como o celular não existe, não preciso desligá-lo e criar uma desculpa.
Pego carona na avenida.
Juro que é verdade. A gente parava um carro ( de preferencia dirigido por uma mulher bonita ) e pedia carona para a cidade.
A cidade é tudo o que fica do rio Pinheiros pra lá.
Tenho 15 e uso o cabelo até os ombros. ( ah ... que saudades desses fios castanhos...)
Vou ao Astor.
O GAROTO SELVAGEM do Truffaut.
Não gosto.
Mas sei que é bom.
Então assisto até conseguir gostar.
Gosto.
Cinema.
Se fazia sexo no cinema.
Nas poltronas e na tela.
As cenas de sexo eram felizes. Ninguém era punido por ter pulado o muro.
A tela tinha cortinas e o lanterninha te ajudava a encontrar um bom lugar.
Bom...
Descí a Cosolação de carona e me perdí no centro.
Escureceu.
Fiquei olhando as meninas de rua, as damas da noite.
Não haviam travestís. Travestís, só em shows e na rua delas.
Voltei a pé.
Na Teodoro, muitas famílias na rua. Andando. Falando alto.
Um jogo de bobinho na rua Fidalga.
Muito sotaque de portuga, de italiano, de japa, de espanhol.
Como tinha estrangeiro em SP !!!!!
Meu amigo dormia de janela abaixada.
Eu abria o portão e pulava a janela. Era pra não incomodar os pais dele.
Caramba! Ele tinha conseguido um vinil do Ted Nugent!!!!
Que tesouro!
Escutamos 3 vezes e gravamos pros caras da escola.
Disco era vendido como artigo de respeito.
Valia o peso em ouro e ninguém pirateava.
As fitas eram dadas, jamais vendidas!
Voltei pra casa muito tarde...meu pai conversava na sala com minha mãe ( tinha faltado a luz )
Os sapos cantavam por todo lado ( sapo canta ! ).
Com luz de vela, relí Tom Sawyer.
Eram só 6 canais de tv.
Pintei uma telinha que eu tinha abandonado pelo meio um ano atrás. Vì que não sou pintor.
De madrugada, escreví uma longa carta para a Aninha.
Caprichei na letra, e pintei o papel de azul.
Jamais foi enviada.
Minha mãe foi a granja comprar um frango vivo e fui com ela. De manhã, cedo.
Nessa tarde, matei aula para jogar vídeo-game.
Voce tinha de jogar na rua, numa casa de diversões eletrônicas.
Voce jogava com neguinho te vaiando, torcendo contra, fazendo piada.
Era um frenesí.
Fizemos um baile na casa do Pedrão.
As meninas dançaram de rosto colado. Com os caras.
Fiquei muito vermelho.
Eu pegava uma vassoura e ensaiava no quarto.
Não existiam darks ou emos.
Eram rockers e caretas. Só.
As roupas eram muito vivas, os cabelos muito loucos e a gente cheirava a suor.
E tinha caspa.
Se transava nas escadas dos prédios.
Não existia câmera.
Quando voce batia uma foto, era pra sempre. Não podia ser corrigida. Era o momento decisivo.

Tempos depois, apresentei minha primeira peça.
Era 1985, mas ainda havia um rastro dessa era anos ingênuos e alegres.
O público aplaudia no inicio.
Vaiava os vilões.
Assobiava pras gostosas.
Respondia às falas.
Reagia.

O mundo nos congela, hoje, às telas solitárias, ao cinema fácil, ao estar só.
Tudo pode ser feito só. Até mesmo brincar.

Eu andava pela praia do Tombo e dormia na areia de Pitangueiras.
Não usava preservativo.
Voce entrava no tesão e ia instinto embora.
A sorte decidia o futuro.

6 canais de tv!!!!!!!