A DESTRUIÇÃO DO CÉREBRO HUMANO

Voces devem saber que tenho um relacionamento, longo, com uma mulher mais jovem que eu, de outra geração. Uma das diferenças que ela tem comigo é o ato do beijo. Ela não gosta, eu adoro. Para mim, o beijo é tão importante quanto o coito ( que palavrinha feia ). Para ela, beijar é perda de tempo, que se vá logo ao finalmente. Essa diferença era para mim uma particularidade dela, mas penso que mais que isso, é uma característica de toda uma geração. ------------------ Recebo ontem um texto onde se diz que na minha geração o tempo médio de atenção musical era de 30 segundos. Agora são 8. Músicas atuais, hits, não podem ter introdução e o refrão deve chegar em no máximo 5 segundos. Melhor ainda, muitas começam pelo refrão. Outras são apenas um refrão. O som deve ser próprio para fones, ou seja, hiper comprimido, e a música deve ter hooks, exigir a atenção a cada 4 segundos. É uma formula matemática e é assim que se compõe hoje. Pega-se esse molde e se coloca uma letra feita de sons e não de frases. ------------------- Comecei a ouvir rádio em 1974. Claro que ouvia antes, em 74 eu já tinha 12 anos, mas foi em 1974 que comecei a procurar o que ouvir. O grande hit de então era Don't Let The Sun go Down on Me, de Elton John. E penso em uma pessoa de 18 anos tentando escutar essa canção agora. Uma longa introdução de piano, dúzias de frases poéticas e só após um minuto e meio entrava o refrão. O ouvinte acostumado aos sucessos de 2023 deve ter a sensação de estar ouvindo algo tão exigente como Mahler ou Bruckner. Todos os sucessos de 74, de The Love I Lost à Sundown possuem belas introduções, um refrão longo e letras com narração. Cinco minutos de atenção. Era o que exigiam. ------------------ Um pensador brasileiro disse que para se ter a profunda experiência espiritual que a música erudita dá, é preciso se concentrar por todo o tempo que ela dura. Se voce se distrai ela se torna apenas um ruído a atrapalhar o ouvido. Eu sei disso porque na maioria das vezes eu me distraio após dez minutos de audição. Nas vezes em que consegui me manter atento, a experiência sempre foi muito significativa. ----------------- Creio não ser preciso que eu cite filmes e séries de TV como construções que hoje também usam uma fórmula matemática para conseguir obter sucesso. Estes dias eu assisti O Belo Brummel, um filme de 1952 que com seus diálogos longos e sua falta de ação física não conseguiria ser suportado por mais de dois minutos por alguém da geração 2023. --------------------- A mulher jovem com que me relaciono ainda consegue assistir um Hitchcock de 1955 e se sentir emocionada, ainda ouve um LP inteiro, adora ler um livro que não seja constituído apenas de ações chocantes ou frases "úteis", mas ela é diferente de mim, muito diferente. Sua atenção é flutuante e sua concentração inexiste. Suas habilidades são ligadas à velocidade. Seu mundo é feito de objetividade, uma objetividade que eu jamais tive. Por ser inteligente, ela ainda consegue acessar o lado humano de seu cérebro, e mesmo tendo sido treinada a não parar muito tempo em nada, ela tem uma sensibilidade que pede por profundidade e revelação. Muitos ainda são assim. Mas nossa humanidade está morrendo. --------------------------- O que diferencia o homem do bicho sempre foi o tempo. Nós lidamos com ele, o esticamos, o dominamos, o transformamos em ferramenta. Nossos beijos, bichos não beijam, eles cruzam, são a tentativa de prolongar o êxtase e nos concentramos em atos "inuteis" na tentativa de obter uma revelação. Um animal pode ficar horas concentrado a espera de uma presa, mas é apenas isso, por séculos e por toda uma população, todo urso fez e fará a mesma ação. E quando perdemos o dom de usar o tempo perdemos nossa particularidade. Voce deixa de beijar ao seu modo e passa a transar como em qualquer filme pornô. Voce não mais tira da audição de Pink Floyd ou The Band uma coisa só sua, mas passa a ter a mesma experiência, vazia, que todos têm ao ouvir o novo hit mundial da cantora POP de sempre. ---------------- É o espírito da manada, maldição anti individualista que faz com que conversar com João ou Pedro seja idêntico a conversar com Tiago ou Ivan. As mesmas crenças, os mesmos medos, os mesmos desejos. Não à toa a palavra "erotismo" é agora considerada de profundo mal gosto, coisa de velho gagá. O erótico traz ao jovem a ideia de coisa lenta, sem sal, absurda, broxante. Se os filmes mainstream não possuem nenhum erotismo hoje, isso se deve ao fato de que ninguém mais tem paciência para Eros, se querem excitação eles usam o mais hard pornográfico. E na pornografia, filosofia única do mundo de 2023, voce goza em dois minutos. Mais que isso "enjoa" e voce perde o tesão. Observe que no funk se fala em sentar, comer, foder, jamais se beija, se abraça, se deseja. Antes do desejo já se faz o final. ---------------- O futuro, ele será anti humano.