O SAMURAI, UM FILME DE MELVILLE COM ALAIN DELON. UM TRATADO SOBRE O COOL.
Aviso que O SAMURAI não é um filme típico de Melville. E aviso também que Jean Pierre Melville é talvez meu diretor favorito do cinema francês. O SAMURAI, feito em 1967, é o filme mais elogiado feito por Melville, mas não é meu favorito. BOB LE FLAMBEUR é imbatível. Revejo O SAMURAI. O que sinto, o que vejo? ------------------ Alain Delon é Jeff Costello, um assassino de aluguel. Na primeira cena ele está deitado, vestido, em seu quarto. Uma cama, um armário, um passarinho na gaiola. O quarto é pequeno, sujo, e ao mesmo tempo é estremamente arrumado. Tudo em seu lugar preciso, cada coisa completamente à postos. Delon pouco fala no filme, seu rosto não muda de expressão. Ele não sorri, não demonstra medo ou raiva. Mas Delon não é um Eastwood. Clint é impassível e seu rosto é sempre indecifrável. Delon é impassível mas deciframos ou pensamos decifrar sua alma. Neste filme achamos que estamos vendo dor ou raiva em seu rosto, talvez solidão? Alain Delon sempre foi muito melhor ator do que se pensa. Por ser uma super estrela tende- se a o perceber como "uma personalidade". Ele é mais que isso. Tinha a capacidade de transmitir dor sem fazer esforço algum, de ser mau sem abrir a boca, parecia explodir em silêncio. ------------------- Costello mata um homem, é pego como suspeito, a polícia o pressiona, ele foge, é traído. E no meio de toda essa ação o que vemos é Alain Delon colocar seu chapéu, vestir o terno preto, deitar sobre a cama, andar pelas ruas, roubar um carro. ------------------- Melville se deixa parar sobre atos que parecem à toa: um curativo feito no braço, o vestir-se, a porta sendo trancada. São dezenas de cenas que parecem gratuitas, sem porque. Cenas longas, sem música, METICULOSAS. Noto então o sentido do filme: ele é sobre método, sobre precisão, sobre um homem que faz tudo corretamente, cada gesto é econômico, exato, perfeito. Eis o foco: ele é um samurai, e quando ele coloca um esparadrapo no braço ou alisa a aba do chapéu, é como um samurai golpeando seu inimigo. Cada movimento é perfeito, leve, sem nada fora do lugar, gestos de arte pura. ---------------- E se Delon-Costello é assim, Melville também é. O filme é um ataque de espada, aço que corta o ar. E como vemos nos filmes de samurai do Japão, para haver o golpe é preciso horas de preparação. Quando uma arma dispara ela se move de A para B sem nada que a distraia. O braço e a arma se tornam um objeto único. -------------- Costello foge da policia no metrô, nas estações, nas ruas. A ação acontece em silêncio, em economia, em suspensão. Matemáticamente. O filme é cartesiano, e por isso é 100% francês. Nenhum outro país poderia fazer um filme como este, tão seco, tão preciso, tão cool. Concentrado.----------------- Sim. Não há filme mais cool que este. Costello é gelado, alheio e atento, um tigre. A SOLIDÃO DO SAMURAI SÓ PODE SER COMPARADA À SOLIDÃO DO TIGRE NA SELVA. Melville abre o filme com essa citação. Diz ser do livro Bushido, dos samurais. Mas é mentira. Essa citação não é japonesa. Foi inventada pelo diretor. -------------- Em que pesem Bogart e Mitchum, Alain Delon é o ator mais cool do cinema. E Melville o mais cool dos diretores. Não há ator que seja tão cool em papeis tão antipáticos. E não há diretor que seja tão cool em filmes tão pouco afetados. A impressão que tive é que diretor e ator fizeram o filme em tal estado de concentração que nada poderia entrar na obra sem estar em foco absoluto. Tudo nele é importante e nesse mundo há quase nada. Eis a palavra que procuro e agora encontro: ZEN. --------------- O ZEN se encontra quando conseguimos fazer um ato simples com absoluta precisão e suprema perfeição. Para isso é preciso que olhar um passarinho ou dar um nó de gravata seja tudo o que existe para quem o faz no momento eterno em que o faz. O SAMURAI é isso: Costello é zen: ajeitar o chapéu com tamanha concentração é atingir o zen. --------------- Melville sabia tudo. Seu filme é nú. Seu filme é simples. Seu filme é perfeitamente conciso. Seu filme é zen.