A LOJA DA ESQUINA - ERNST LUBITSCH, TALVEZ O MELHOR FILME DE HOLLYWOOD

Pauline Kael o chamava de um filme perfeito. Eu o revi pela segunda vez após mais de 15 anos e fiquei impressionado. O filme nada tem de sensacional, de fantástico, de mágico, mas é completamente real, envolvente, convincente, atemporal ( sim, este é um Lubitsch nada velho ), sublime. ------------ Na primeira cena vemos funcionários chegando para trabalhar numa loja. A peça em que o filme se baseia é húngara e Samson Raphaelson, o roteirista, mantém o local e os nomes dos personagens: estamos em Budapeste. Cenário e iluminação perfeitos, é uma linda manhã numa rua cheia de vida. Conhecemos então os personagens através de um caso: o patrão deverá comprar cigarreiras ou não? Eis como se faz uma cena perfeita: somos apresentados à todos os atores de modo natural, simples, sem forçar nada. James Stewart é o empregado mais próximo do patrão, o chefe é um tipo simpático, hesitante, inseguro, nervoso. Feito de modo esplêndido por Frank Morgan. Joseph Schildkraut é o vendedor mais velho, inseguro, coração mole, casado, conformado. Há ainda duas vendedoras e o garoto das entregas. Em poucos minutos voce conhece todos, e conhece-os bem. A loja se torna uma ambiente acolhedor, voce está em casa. --------------- Surge então o primeiro tema do filme. Através de anuncios de jornal, prática comum antes da internet, James Stewart conhece uma moça. Se identificam sem nunca terem se visto. Ele, tímido, teme o primeiro encontro. Uma mulher, Margaret Sullavan, vem pedir emprego na loja, e não há problema algum em adivinharmos que é ela a moça do jornal. Stewart não sabe, ela não sabe, nós sabemos. Contratada, os dois passarão o filme todo antipatizando um com o outro. Ela o vê como um tipo de frio e banal funcionário, ele a vê como vaidosa e distante. --------------- Surge o segundo tema, o patrão começa a ter comportamento estranho. Saberemos o motivo mais tarde. De certo modo Frank Morgan é o centro do filme, é ele quem move o destino. E sofre por ele. Não se trata de uma comédia e nem de um drama, este filme é uma história, humana e real. Simples e encantadora. ---------------- Há uma cena, já perto do final, em que todo o grupo e funcionários está ao redor da caixa registradora. O patrão, de volta do hospital onde fora internado, distribui bonus aos empregados. Todos sorriem, falam, estão prontos para ir comemorar a ceia da Natal. Nesse momento tive um desses raros momentos em filmes: vi o conjunto dos atores e percebi o quanto aquilo parecia real, verdadeiro, humano. Mas quero dizer que era mais que isso, aquele momento era a humanidade em seu melhor, um momento de perfeição, uma daquelas cenas que parecem dizer algo do tipo: Eis a humanidade, voces são nobres, creiam nisso. ------------------ O modo como James Stewart e Margaret Sullivan se reconhecem não poderia ser melhor. Não é " de cinema", não é cômico, não é choroso. Ela simplesmente percebe, ele deixa que ela saiba. Uma cena feita com tão grande habilidade que me comoveu profundamente. Diretor e atores em sintonia perfeita. Sentido de timing exato. E dois atores em seu melhor. É uma das maiores cenas da história e das menos sensacionais. ------------ Não há como elogiar o bastante um ator como James Stewart. Pense em tudo que ele fez e se ajoelhe. Ele estava lá, nos melhores Hitchcock. Nos melhores westerns. Nas melhores comédias. Nos Frank Capra históricos. E está aqui. Não houve e não haverá ator mais icônico. Já Margaret Sullavan é uma atriz mais esquecida hoje. Mas foi grande e foi das melhores. Morreu tragicamente cedo, e isso explica seu quase esquecimento. Não era glamurosa. Como Stewart, era real. -------------------- Este não é um filme velho como LADRÃO DE ALCOVA porque o mundo que ele retrata ainda existe, embora quase extinto. Um filme deste tipo poderia hoje ainda ser feito no Japão ou na China, mas seria impossível no mundo cínico da Europa ou dos EUA. Lubitsch crê na bondade, crê nos bons sentimentos, crê nas pessoas. O filme dignifica o ser humano. É lindo.