UM GÊNIO CHAMADO PETER SELLERS
Nenhum filme de Stanley Kubrick irá te conquistar na primeira assistida. Todos precisarão de uma segunda visita e alguns uma terceira. Barry Lyndon eu odiei quando visto na primeira vez e gostei muito na segunda. DR FANTÁSTICO eu achei chatíssimo e mesmo na segunda vez senti tédio. Ontem, não sei porque, vi mais uma vez. E só então entrei na loucura do filme. Teoricamente é uma comédia, mas todos sabemos que não existem comédias feitas com fotografia escura. Um dos segredos técnicos da comédia é a de que elas devem ter um visual claro. Então digamos ser uma comédia mal humorada. Se é que isso existe. Kubrick parece sempre um professor alemão dando aula de alguma ciência exata. Li isso em algum lugar e nunca esqueci. Todos os filmes de Kubrick são frios. Ele parece não ter a menor simpatia humana. Dificilmente voce lembra de alguma cena risonha, calorosa, realmente humana em algum filme seu. Não há amor. Não há mulheres reais. Kubrick parece uma máquina de fazer filmes. Provável que isso ocorra por seu controle maníaco. Filmes hiper planejados. Aquilo que sobra em Kurosawa e Fellini é ausente nele: calor. Desse modo, todo filme de Kubrick sempre parece amputado. A dimensão humana está ausente. São teses sendo filmadas. Aulas de um mestre alemão. ----------------- Dr Fantástico tinha tudo então para ser um desastre, porque de todos os seus filmes é o mais "aula de herr doktor". Mas não. Ontem, finalmente, eu adorei o filme. E isso se deve ao fato de que é este, talvez, o filme com as mais maravilhosas atuações já eternizadas. Todos os atores estão em seu máximo. Vamos a eles. ------------- George C. Scott faz o general que vai à reunião no Pentágono. Seu papel lhe garante o Oscar que viria oito anos mais tarde, com Patton. Observe o que esse ator extraordinário faz na cena em que ele conta ao presidente o desastre ocorrido. Note como seu rosto consegue exibir, ao mesmo tempo, medo da bronca, prazer pela guerra, orgulho ferido, vaidade masculina e prazer guerreiro. Mordendo seu charuto, criando caretas de cartoon, rugindo e gemendo, Scott nos arrasa. Sentimos um prazer sensual em obervar sua face imensa. Mas há mais! Slim Pickens e o sotaque texano, o profissional correto que observa passo a passo suas instruções no manual de detonação. A determinação em cumprir uma ordem. Sterling Hayden, como o general que enlouqueceu, uma atuação maníaca, ingrata, a voz magnífica a falar delírios paranoicos. E Peter Sellers...três papeis que mesmo em meio a atores inspirados, nos hipnotizam. -------------------- O general inglês, modesto, hesitante, o presidente dos EUA, que tem a maravilhosa cena em que conta ao telefone para o colega russo a hecatombe que irá ocorrer: " também estou triste Dimitri...não Dimitri, também sinto muito...okay Dimiri, voce sente mais que eu, mas eu também sinto...", e por fim o cientista alemão, em cadeira de rodas, braço mecânico que se rebela contra ele mesmo, um homem em convulsão tentando domar seu lado nazista. Peter Sellers era um gênio. Um dos muito, muito raros atores que podiam usar esse rótulo. E no entanto ele era um vazio... ---------------- Peter Sellers poderia ter vivido e filmado até este século, mas morreu em 1980, com apenas 50 anos. Teria a mesma idade de Clint Eastwood. Surgiu no rádio inglês, o Goon Show, um programa que fez história, um Monty Python dos anos 50. Começa no cinema ao lado de seu mentor, Alec Guiness, nas comédias da Ealing, filmes que hoje são lendários. Se torna uma estrela em 1962, fazendo Clouseu, em A Pantera Cor de Rosa. Entre 1962-1967 faz todos seus grandes papeis. A partir de 1968 começa sua queda, escolhas erradas, péssimos filmes. Em 1979 tem seu último grande desempenho: Being There, filme de Hal Ashby, onde faz um jardineiro que nunca saiu de casa, um idiota que repete slogans que viu na TV. Alçado a condição de guru, se torna presidente dos EUA. Sim, é Joe Biden em 1979. Indicado ao Oscar, perdeu para Jon Voight em Amargo Regresso. Terrivelmente injusto. ---------------------- Desde 1963 Peter Sellers sofria do coração. Teve quatro enfartes seguidos em 64 e quase morreu várias vezes. Era meticuloso, triste, deprimido, e se casava sempre com a mulher errada. Em cada divórcio, um enfarte. Em entrevistas, Sellers dizia não ter nada dentro de si. Que sua personalidade era um vazio. Sellers dizia viver apenas quando interpretava. Sem um papel ele era como uma coisa morta. Muito triste não? --------------------- Ele me deu alguns dos momentos mais prazerosos do cinema. Não houvesse tanto preconceito contra a comédia, teria três Oscars. PS: Como a vida é mesmo um mistério, vejo agora, no Facebook, uma foto da festa de aniversário de Peter Sellers. Em 1967 ele comemorou em grande estilo. Estava casado com Britt Ekland, uma atriz sueca, e ela fez a festa. Na foto vemos os Beatles, Mick Jagger e Peter O'Toole conversando, enquanto Jeff Beck brinca com uma guitarra ao lado de um nobre inglês. Toda a swinging London foi. Dizem que Sellers ficou a festa inteira ao canto, incapaz de se divertir. Britt Ekland terminaria o casamento no ano seguinte e no divórcio arruinaria Sellers, o que o obrigaria a aceitar qualquer papel. Nos anos 70 Britt faria o mesmo com Rod Stewart. ---------------------- Sim. Peter Sellers foi um gênio. E como todo gênio não sabia viver.