ORIENTE OCIDENTE - SALMAN RUSHDIE. UM GRANDE AUTOR.

Um grande livro palpita, respira, é quente e portanto, vivo. Sendo vivo, ele germina. Um grande livro dá filhos. Ideias filhos. Pensamentos filhos. Ações filhos. Vontades filhos. Lançado em 1994, este é um livro de contos de Rushdie. Eu nunca o havia lido. Estou encantado. O autor, indiano-inglês, anglo-indiano, divide o livro em 3 sessões: Oriente, Ocidente, Oriente-Ocidente. Todos os contos são perfeitos. Rushdie é simples sendo profundo, e complexo sendo acessível. Como todo grande escritor, ele fala muito mais do que parece dizer. Seu estilo, humorado, fantasioso, certeiro, lembra Italo Calvino e James Joyce, Laurence Sterne e Tchekov, Machado de Assis e James Barrie. Os dois primeiros contos se passam na India e são quase anedotas encantadoras. O terceiro, O CABELO DO PROFETA, é mágico. Rushdie mostra sua raiz de Mil e Uma Noites. O conto fala de maldição, destino, bruxaria, horror. Vem então a sessão Ocidente. Yorick é um dos melhores contos que li na vida. ( Os Amigos dos Amigos de Henry James é o melhor conto que já li ). Yorick é o bobo da corte que aparece em Hamlet. Rushdie imagina sua biografia. É um conto ao estilo Sterne, ele gira, ele divaga, ele salta, ele enfeitiça. E faz rir. Uma pessoa que escrava um conto como este tem total domínio da arte. Chinelos de Rubi é sobre um leilão e sobre um amor frustrado. Sobre a loucura do mundo moderno e sobre desejo. Magistral. Colombo e A Rainha da Espanha é bom, mas destoa no livro. É o único que não me impressionou. Na sessão Oriente-Ocidente, temos A Harmonia das Esferas, onde vemos um quarteto amoroso à maneira de Durrell. O final, cortante, é uma peça de rara concisão. Tchekov e Zulu nada tem a ver com o autor russo. São Tchekov e Sulu, de Star Trek. Um diplomata indiano e seu amigo sikh, apelidados de Tchekov e "Zulu". De todos os contos é onde Rushdie mais exibe suas dúvidas e dores de indiano perdido em dois mundos. --------------- O último e mais longo conto, é O Corteiro, uma obra-prima de delicadeza, memoralismo, concisão e de poesia. O autor recorda seus quinze anos. Vivendo em Londres, 1962, na classe média indiana, ele tece uma homenagem a senhora Mary, uma indiana que vivia com sua família, mulher solteira, de uma educação e fidalguia que não mais existem hoje. Com ela há o "corteiro" ( Porteiro ), um emigrado da Europa Oriental, senhor apaixonado por ela, também exemplo de educação. Todo o conto é uma linda homenagem a um tempo, um momento na vida, a pessoas que não mais existem. Eis uma frase: "Aos dezesseis anos a gente pensa que pode fugir do pai. A gente não está ouvindo a boca dele falando pela boca da gente, a gente não percebe como nossos gestos espelham os dele. A gente não o vê no modo como nos mantemos de pé, no modo como assinamos nosso nome. A gente não ouve o sussurro dele em nosso sangue". Caramba! Eis aqui tudo que um autor deve ter: poesia, verdade, percepção, engenho. Em poucas palavras ele diz tudo que há de mais trágico na adolescência. Sabedoria em poucos segundos. Este conto, o final, não é tão brilhante como é Yorick, mas tem uma humanidade digna de Tchekov ou Stendhal. ---------------- Um grande autor.