DAISY MILLER. QUANDO PETER E CYBILL ERAM FELIZES

Nos extras deste dvd, o diretor, Peter Bogdanovich diz que em 1974, época de lançamento do filme, Cary Grant lhe disse para parar de falar em entrevistas que ele era feliz. Lhe disse Cary que as pessoas odeiam quem é feliz e pior ainda, odeiam a beleza. Peter Bogdanovich havia largado sua esposa para se casar com CybilL Shepherd. Ou seja, era um casal belo, rico e feliz. Que alardeava isso para todos. Cary Grant percebeu que um só erro de Peter e de Cybil iria destruir sua carreira. O erro foi DAISY MILLER. Filme feito por ele para ela. --------------- Na geração que estourou no começo dos anos 70, creia, Peter Bogdanovich era até 1974 o mais bem sucedido. Coppolla havia feito os dois Chefões, mas A Conversação seria um flop nas bilheterias e sua fama de egocêntrico intratável já se firmara. Scorsese só se tornaria importante com Taxi Driver, em 1976. De Palma era marginal, condição que ele manteve por quase toda sua carreira. Friedkin era sucesso imenso, mas já estava perdido em cocaína. Hal Ashby nunca foi um nome grande. Bogdanovich era o único que permanecia invicto: grandes filmes e grandes bilheterias. Além do que, era careta e amado pelos diretores veteranos. Mas veio o divórcio e Cybil. DAISY MILLER foi feito para provar que ela era uma grande atriz. Foi massacrado pelos críticos e passou em branco nos cinemas. Peter começou a afundar. Apesar de ter filmes maravilhosos feitos após Daisy Miller, ele, como aconteceu com Friedkin, nunca mais se tornou um diretor classe A. Inclusive em 1979 e 1980 ele fez duas obras primas perfeitas e divertidas. Mas que nem sequer passaram nos cinemas do Brasil. Quando a indústria marca alguém, essa pessoa fica estigmatizada forever. ------------------------ O livro de Henry James é soberbo. Foi Daisy Miller que me fez apaixonar por James, paixão que se mantém inalterada. O romance fala de uma americana muito rica que passa férias na Europa. Lá, ela irá viver o choque de culturas. Os europeus não aceitam o modo americano de ser, e ela não percebe a malícia da Europa. Daisy é sincera. Ingênua. Livre. Os europeus têm códigos de conduta. São cínicos. Fofocam. Henry James era um americano que viveu quase toda vida em Londres. Esse era seu tema. O conflito entre o modo americano de viver e o velho modo europeu. Nos seus livros ele anuncia a grande mudança psicológica do século XX. O modo americano se faria dominante. Ser "livre e sincero" seria o valor supremo. Pregar o que "fica bem" seria abolido. Claro que James, gênio que era, percebeu que ser livre e sincero seria o novo "ficar bem". Tudo que parece novo e ousado logo se transforma em convenção. E o filme? Como é? ----------------------- Nos extras Bogdanovich diz que se tivesse sido feito após 1985, Daisy Miller teria sido um sucesso. Adaptar Henry James em 1974 era um ato de ousadia. A partir de 1985, adaptar James ( e Austen, Forster, Wilde ) se tornou moda. Não havia público para Daisy Miller em 1974. ------------------- O filme é bom, é bonito, é invulgar. Visto hoje eu não entendo o porque de seu fracasso. Cybli não está nada ruim. Sua Daisy é uma americana adorável. Ela fala sem parar, fala tudo que pensa, age, é impulsiva. O olhar que ela dá em sua última cena, quando olha para trás, é coisa de grande atriz. Peter Bogdanovich teve a inteligência de não tentar abarcar todo o livro. Ele transforma a densidade de James em cinema popular. Na primeira metade ele é quase uma comédia esquisita e depois se torna um drama cruel. O americano que vive a muito tempo na Europa, Barry Brown, perde Daisy Miller porque crê ser ela uma grande mentirosa. Daisy diz sempre a verdade, mas europeus não podem crer que alguém fale tantas verdades. Quando ele a perde percebe que ela dizia a verdade. E vem sua bela frase final: "Talvez eu tenha morado tempo demais na Europa". Esse é Henry James falando. ------------------- Comentando o filme em 2014, Peter Bogdanovich ainda chora ao se recordar da cena final. Eu não chorei. Mas é um fim de pungente tragicidade discreta. Henry James foi o maior escritor a tratar da incomunicabilidade entre seres que ansiam pela comunicação. O filme é digno dele.