USUFRUA SUA VIDA

Tenho uma amiga, escritora, de direita, então voce não a conhece, que fez um belo texto sobre algo que muito a surpreende. A incapacidade das pessoas usufruirem uma experiência. Ela tem amigos que passaram por aventuras, viagens incríveis, conheceram pessoas fantásticas, mas que não tiraram nada do que viveram. Ela não está falando de aprendizado. Fala de simples narrativa, de ter o que contar, lembrar, descrever. Mais que falta de vocabulário, são pessoas cultas, que possuem leitura, o que ela precebe é a incapacidade de maravilhamento. A alma, ou coração, está morto. Ela diz que nunca houve tanta quantidade de maravilhas ao nosso alcance, mas estranhamente, nunca houve tantos zumbis no mundo. ------------ Falo à ela da minha experiência, tudo que escrevo neste espaço sempre é baseado em minha história pessoal, e lhe conto que meu ano mais rico em memórias, maravilhamentos, descobertas, foi aquele que aparenta ser o mais rotineiro e que sem dívida foi o mais solitário. Passei um ano, por razões que não cabe aqui dizer, sem amigos. Larguei a escola aos 15 anos e me distanciei dos amigos que tinha. Foi um ano em que minha rotina consistia em ler, ver TV, pouca, ler mais, ouvir música, ler. E dentro dessa vida, tão aparentemente banal, eu tiro os momentos mais mágicos, plenos, ricos, complexos, de toda minha existência. O que me faz crer que a pobreza atual se deve a ausência de solidão física, de tempo morto, de nada para fazer, de vazio espacial. De silêncio. Eu sei por experiência própria que a internet mata a alma. A telinha nos aliena de nós mesmos e nos torna um objeto que capta coisas e não as usufrui. É preciso vazio, vazio de tempo e de espaço para se absorver um livro, um filme, uma canção. É vital ter vazios para amar uma paisagem, a cor de uma manhã, o ar frio de uma noite. O aumento da velocidade diminui a apreciação. Comer com pressa é viver com pressa. -------------- O córrego que cruzei, numa estreita ponte de madeira, aos 10 anos, é uma lembrança muito mais rica que a primeira viagem à Paris. Porque cruzar aquela ponte foi um momento parado na vida, foi uma ação de total concentração, foi uma narrativa sem acessórios. Já a viagem foi uma ação entre várias, uma imagem em meio a centenas de outras imagens, uma corrida dentro do tempo que voa e se desfaz. Desse modo, o eu que cruza a ponte vive para sempre dentro de seu tempo particular, e o eu que desce do hotel em Paris faz parte da história do mundo, não da história dele. -------------- Acho que aí está o segredo. A vida do garoto de 15 anos que fui ERA DELE É SÓ DELE. A vida do cara de hoje, conectado no mundo 24 horas por dia, é a vida de todos, do planeta, do mundo. O que ele vê é aquilo que o mundo vê, portanto ele não pode e não sabe mais ter uma experiência só dele. Aos 15 eu lia meu livro, livro que eu pensava só eu ler, só eu ter, só eu ser como eu era. Hoje leio sabendo quentos mais estão lendo, quantos mais comentam, quantos mais estão comigo. O livro não é meu, é do mundo. A experiência não é minha, é geral. ---------------- Hoje é preciso uma força imensa para criar algo de único, particular, individual, só seu. Por isso a pobreza de experiências. Ver um disco voador no Vietnã não é mais uma coisa úncia e sagrada. É só mais um post sobre ovnis na net. Graças a Deus eu vivi meus 15 anos em 1977. Completamente isolado. Só. Com um Voltaire só meu. Um Truffaut que só eu conhecia. Um Roxy Music que cantava só para mim. Minha casa parecia ficar em uma rua sem vizinhos. Meu quarto era uma caverna secreta. Eu era o descobridor e inventor de uma vida, a minha. Foi um ano mágico. Porque foi e continua sendo parte de mim e só de mim. Dura. Vive. Respira e é pra sempre. E é assim.