ANDRÓIDES SONHAM COM OVELHAS ELÉTRICAS? OU BLADE RUNNER, O LIVRO DE PHILIP K. DICK
É uma obra-prima. Ponto final. Minha formação à Harold Bloom pede que eu não considere essa afirmação. Na minha formação só se diz obra prima a livros muito bem escritor, onde exista algo do virtuoso refinamento de Henry James e Proust. Mas então porque o chamo de obra prima? Simplesmente porque ele vai fundo dentro de quem o lê. Sim, Dick não é um grande autor na tradição de Fitzgerald ou mesmo Heminguay. Sua prosa é dura, os momentos líricos são mal preparados, ele é quase tosco. Mas aquilo que ele imagina! É soberbo. --------- Existem dois tipos de bom escritor. Aquele que escreve tão bem, que faz com que todo tema, mesmo os mais pobres, pareçam gigantescas obras de arte. E são. Sua mente vê além do aparente. Eles realmente são hiper dotados. Uma simples festa de aniversário de 15 anos se torna um épico. E há o escritor que tem ótimas ideias, mas que ao mesmo tempo não consegue elevar suas ideias à altura daquilo que ela poderia ter sido. São livros que não dão um prazer tão profundo ou refinado, mas perturbam pela presença de uma mente original. Claro que meu mundo é o do primeiro caso. Me sinto em casa lendo estilistas como Stendhal ou Sebald. Porém, livros feitos por poderosas imaginações me dão excitação. E este livro é elétrico. ---------------- Esqueça o filme. O livro é muito melhor e bem diferente. O centro do romance são os animais. Isso no filme não existe. As pessoas que ficaram na Terra vivem na esperança de poder possuir um animal de verdade. Extintos, os poucos animais remanescentes valem fortunas. Deckard, o matador de androides, matará 6 deles em um dia, e tudo que ele deseja é poder ter um bicho, um bicho como aqueles dos quais ele só ouve falar. ------------------ O romance começa com o casal, aqui Deckard é casado, escolhendo o estado de espírito do dia. A esposa escolhe a depressão. Ela precisa purgar. Ele então parte para caçar. Antes há uma deliciosa conversa com o vizinho sobre animais. ------------------ Mercer é um tipo de deus acionado por uma espécie de video game. Na tela voce vê esse ser, um velho que sobe uma montanha. Ao acionar essa tela, VOCE SE SENTE CONECTADO A TODO O PLANETA. ------------- Surpresa: Mercer existe. O livro tem um lado espiritual fortíssimo. Não lembro mais se o filme o tem. ---------------------- O personagem de Rutger Hauer no livro é bastante secundário. Não há nenhuma glamurização dos androides. Deckard chega a transar com uma. Ah, eu ia esquecendo de dizer! O que diferencia basicamente androide de humano é a empatia. Um androide não tem empatia por nada, pois ele não se vê em nada. Humanos sentem a dor de outro humano, daí os bichos: eles são humanizados. O animal se torna um exercício humano de empatia. Amar um bicho é a prova de humanidade. ------------------ Dick era louco? Talvez. Casou inúmeras vezes, fez experiências nos anos 60 com drogas e sua própria mente, foi internado, virou sem teto, e morreu aos 53 anos, de derrame, às vésperas de estreia de Blade Runner. O copião que ele viu o agradou. Morreu feliz. Teria ficado rico se chegasse vivo aos anos 90. -------------------------- Não posso falar mais nada do livro. Ele é cheio de enredo. Autores como Dick sempre têm muito a contar. Não a toa ele escreveu dezenas e dezenas de livros em carreira de 30 anos. Eu acho que voce deveria o ler. Ele propõe temas atuais, relevantes, urgentes. E emociona, dá uma sensação de prisão, de asfixia, de alucinação.