MAESTROS, OBRAS-PRIMAS E LOUCURA - A VIDA SECRETA E A MORTE VERGONHOSA DA INDÚSTRIA DA MÚSICA CLÁSSICA - NORMAN LEBRECHT
Primeiro fato que talvez voce não saiba: toda invenção tecnológica relacionada à música foi criada tendo em vista a música clássica. Ouvir uma sinfonia requeria oito ou nove discos, e então o LP foi criado, pela CBS, para comportar uma sinfonia. Quando escolheram a rotação, 33 e um terço, o número de sulcos e a duração, tudo foi pensado tendo em vista um concerto. Um lado de vinil teria o tamanho de um concerto de Mozart, e um LP inteiro serviria para a Quinta de Beethoven. Mais tarde, quando a Philips criou o som estéreo, tudo foi pensado para uma orquestra e nos anos 80, quando da criação do CD, outra vez pela Philips, com ajuda da Sony, optou-se pela duração necessária de 80 minutos, tempo da Nona de Beethoven. Morita e Ohno, os poderoso da Sony eram fãs de Beethoven e a Philips, holandesa, sempre viveu em função de suas orquestras. ---------------------------------------------- CBS, Decca, Philips, Deustch Gramophon-Siemens, EMI, RCA, essas as cinco grandes. Cada uma com seu estilo próprio, com sua sonoridade. Na Inglaterra, a Decca com som mais puro, autores mais modernos, a EMI mais conservadora. Nos USA a RCA mais popular, a CBS elitista. Já na Alemanha, a DG-Siemens, com suas terríveis raízes nazistas, a empresa chegou a usar 10 mil escravos durante a guerra. O livro, sempre fascinante, fala de suas origens, do modo como cresceram, e em como, entre 1930-1960, ouvir música clássica era um hábito cotidiano, seja em rádio, disco e depois TV. Como aconteceu no cinema, as empresas eram administradas por gente do meio, que amava a arte que produzia, brigava para dar emprego aos seus artistas favoritos, compensava as perdas com os lucros baseados na grande quantidade de produção. É uma época maravilhosa, assistimos o desfile de maestros e solistas que se tornaram mitos. O LP de música clássica, artigo de luxo, custando mais que o dobro que um disco POP, eu peguei o fim dessa era, nos anos 70 comprar um disco erudito ainda era um ato de status, eles eram melhor gravados e melhor embalados. Vendiam bem. Caruso chegou a vender 100 mil cópias em um ano nos EUA. Toscanini vendia 50 mil facilmente. Glenn Gould, quando surgiu nos anos 50, vendeu 200 mil Lps em pouco tempo. As gravadoras se entendiam, trocavam artistas, mantinham respeito, não traiam. Wagner invadiu os lares. --------------------------------- Mas a EMI contratou os Beatles....e tudo mudou. De repente a empresa percebeu que podia ganhar dinheiro como jamais havia imaginado. Não eram mais milhares de libras, eram milhões e milhões. Para administrar tanto dinheiro, economistas, advogados, empresários de outros ramos passaram a mandar na empresa. O lucro passou a ser o alvo. Esses homens, vendo que o setor erudito levava dois anos para começar a dar retorno, colocaram o setor em lugar secundário. Pela primeira vez, o POP se tornou o centro de uma gravadora. --------------------------------------- Os produtores eruditos reagiram da pior forma possível: vulgarizaram. Começaram a inundar o mercado de pseudo discos clássicos. Mozart em ritmo de bossa nova, Beethoven para crianças, Vivaldi em meia hora. A crise se agravou. --------------------------------------------- Nos anos 80-90 houve mais um boom. O CD obrigou os colecionadores a recomprarem tudo na nova mídia. Em 1988-89 as sinfonias voltaram a vender aos milhares e milhões, novas gravações de óperas, novos compositores. Mas ocorreu um erro fatal. Empolgada, a SONY inflacionou o negócio. Começou a roubar maestros e estrelas, elevou salários de executivos, apostou num mercado frágil. As outras tentaram acompanhar o ritmo da japonesa. Logo começaram a quebrar. A Decca foi vendida para uma empresa de bebidas. A CBS uniu-se a RCA. A DG Siemens foi absorvida por uma empresa química. A SONY, enlouquecida, chegava a lançar quatro versões diferentes das Quatro estações de Vivaldi em um mês. O mercado saturou. Cds encalhavam. A oferta não cessava, e tontos, sem saber o que comprar, os fãs se perdiam. Então veio a patada final: a Naxos. ------------------------------------------------ UM alemão, em 1993, fã de música clássica, viu que era possível fazer CDs baratos usando orquestras e músicos dos países falidos da ex cortina de ferro. Se um CD da Decca custava 9 dólares, o dele custaria 3. Claro que o CD da Decca tinha som melhor, músicos de ponta, enquanto que os da Naxos, nome da nova empresa, eram músicos apenas medíocres. Mas era a mesma sinfonia, era Beethoven. A Naxos monopolixou o mercado. Lançava centenas de títulos todo mês. Durante cinco anos foi um massacre. ----------------------------------------------------------------------- Entro na minha história agora. Fã de rock, eu sempre achei que seria um desperdício passar pela vida sem ter ouvido Mahler e sem conhecer Schubert. Mas meu dinheiro era para discos de rock. O que eu fazia? Em 1993-95 vi que nos supermercados havia uma ampla oferta de CDs clássicos a preço de banana. Eu sabia quais eram as grandes orquestras e os grandes músicos. E via que nesses cds as orquestras eram coisas como a Sinfônica da Eslováquia ou um pianista da Letônia de nome desconhecido. Mas caramba! Era Mozart! Era Bach! Comprei então. Comprei muito! E em casa, sempre tive bom ouvido, percebia que eram CDs com som precário e obras tocadas de modo sem brilho. Mas okay, era barato. Como eu, um monte de gente fazia o mesmo. As grandes quebraram. -------------------------------------------------- Em 2004 acaba a música erudita gravada. Foram exatamente cem anos. O autor não tem dúvida em decretar o fim. Ela morreu. Não se lança mais nada. Fim. ---------------------------------------------------------------- Outro motivo, esse inevitável, é o fato de que voce não vai comprar uma obra que voce comprou em 1998. O LP riscava e precisava ser recomprado. O CD era pra sempre. Um ouvinte formava uma coleção e fim. As gravadoras não se preocuparam em lançar novos compositores, e centradas no velho canone, esgotaram o veio. Existem 240 versões gravadas de Vivaldi. Quem irá comprar todas? O caminho teria sido educar o consumidor a perceber que Beethoven por Karajan é diferente de Beethoven por Furtwangler. Que valeria a pena ter a mesma obra em 3 ou 4 versões diferentes. Mas isso não foi feito. Bastava ter uma gravação do concerto 20 de Mozart. Mesmo que pela orquestra de Wellington. Era Mozart, não era? -------------------------------------- A indústria quebrou antes da Net. Hoje voce pode ouvir de graça as maiores obras com os maiores intérpretes. Isso é bom? Não. Não é. Não ouviremos novas orquestras brilhantes, não surgirão novos maestros lendo Mahler de um modo original, não se formarão grandes vozes. Serão escutados os mesmos de sempre para sempre. ------------------------------------------- Lembro, recentemente, talvez em 2018, de entrar na parte de CDs eruditos da Livraria Cultura na Paulista. Uma obra de Bach tocando ao fundo. Calma no ambiente. E aquelas obras míticas ao alcance das mãos. Caras, muito caras. Lembro mais antigamente da sessão de clássicos do Museu do Disco. Os LPs, grossos, encartes, libretos, discos triplos, quádruplos, a um preço absurdo. O selo Deustch Grammophon e o nome de Solti, Muti, Baremboin, Ozawa...O lugar cheirava melhor, as pessoas que compravam aquilo pareciam melhor, havia a aura de que fala Benjamin. --------------------------------- No sebo em que vou, escondido num canto, jogado no chão, milhares de CDs de música clássica esperam um comprador que nunca virá. Sujos, mal conservados, pobres, sem aura alguma, são dejetos. Isso fala muito sobre nossa arte atual.