INCONSCIENTE

Vou considerar apenas o DNA. Nada de alma portanto. Por 200 mil anos, no mínimo, vivemos a experiência de ver lobos trucidarem nossos companheiros. E ao anoitecer sentíamos o pavor indizível da hora da fera. Escondidos em árvores e depois em cavernas, encostados, passávamos a noite escutando urros, gritos, guinchos. Todo amanhecer era a alegria de mais uma vitória. Por 200 mil anos, na verdade mais, matávamos quem roubasse nossos grãos, matávamos por nossa área de caça, matávamos por nossa mulher, tomada. Se esperava de nós que assassinássemos bem. Capturamos bichos. Plantamos muito depois, e mesmo como agricultores, lutávamos para manter a terra. Por 200 mil anos, ou mais, bem mais, jogávamos ao lixo nossos bebês defeituosos. Sobrevivia quem podia ajudar a sobreviver, os doentes atrapalhavam. Nossos corações viviam encharcados de adrenalina, nossos ouvidos sempre alerta, prontos para fugir ou para brigar. Todo o tempo. Não havia família. Enquanto fosse forte um homem procriava com quem pudesse. Quando fraco, que se escondesse. Os filhos eram das mulheres, só ao crescer o pai os tomava e os levava à caça. E a guerra. Não havia propriedade. Tudo era do clã. E o clã tinha seu chefe. Esse chefe era aquele que melhor matava. Simples assim. Para poder comer, ou ter um teto, voce se submetia ao clã. A religião era a explicação da vida. Uma defesa contra o medo. A arte era sempre religiosa. Tudo era exterior. Eternamente em luta, não havia tempo de olhar para dentro. Não mais de 5000 anos de civilização como a conhecemos. E civilizar é sempre reprimir. Voce não vai tomar e estuprar sua vizinha. Voce não vai fugir da defesa do grupo. Será mantida uma lei, e ela tem por objetivo dar rumo e ordem ao grupo. A lei necessita história, tradição, costume. Nossa mente começa a ser ocupada por regras, novos hábitos, obrigações. Para onde vai o homem antigo? Para a caverna da mente, a zona escura, o inconsciente. Não se apaga essa herança por simples vontade. Ficou escrito em algum gene: matar, fugir, se esconder, estuprar, grunhir. Medo. Muito medo. Voltando no tempo somos 100 mil pessoas no planeta. Ou menos, claro. Tivemos as mesmas experiências. Por milênios. Somos todos parentes. Temos portanto o mesmo inconsciente. Coletivo. Esse inconsciente está a espreita. Eis ele surgindo em sonho. Numa doença mental. Num ato gratuito. Na arte. Na fala involuntária. No transe. Num crime. Numa guerra. Saúde é conseguir harmonizar consciente-civilização com o inconsciente-barbárie. Como? Nunca pela palavra. Por atos. O inconsciente não fala, faz. Simbolize.