DOIS LIVROS SOBRE UM BRASIL QUE NÃO EXISTE MAIS

   Os dois foram escritos pelo mesmo jornalista: Renato Sérgio. Os dois são da Ediouro e foram editados no começo deste século que já está adulto. MARACANÃ conta a história do estádio que não existe mais. Ficamos sabendo que ele foi um sonho em que mais da metade da população não acreditava em sua concretização. Na verdade ele foi construído para roubar a copa do mundo de 50 da Argentina. O livro, sinto dizer, chato, perde um tempo imenso falando dos trâmites absurdos e kafkianos para legalizar a obra. É política demais, políticos em excesso, burocracia absurda e aquele monte de discursos, inaugurações, blá blá blá que rolou na época.
   Na parte que importa, o futebol, a decepção aumenta, Renato fala muito pouco dos jogos históricos dos anos 50-60, e se joga logo na barrigada de Renato Gaúcho na final de 95, em Edmundo, Romário, Petkovic, ou seja, tudo o que aconteceu no tempo em que o Maior do Mundo já parecia prestes a desabar. Falta glamour.
  O outro livro, bem melhor, é a biografia do primeiro multi mídia do Brasil: Sergio Porto, vulgo Stanislaw Ponte Preta. Ele foi, além do maior carioca do Rio, jornalista, autor de programas de TV, escritor, cronista, e acima de tudo um bon vivant. Foi ele que nos anos 60 cunhou algumas frases que até hoje são repetidas: Em rio com piranha jacaré malandro nada de costas, por exemplo. Outra, que eu considero perfeita para 2020 é: Ele acaba de despontar para o anonimato. Sergio Porto nasceu em família rica, torcedor do Fluminense, amava jazz e samba de raiz. Criou as "Certinhas do Lalau", tipo da coisa que só podia existir no Rio de 1960, todo mês ele escolhia a mulher mais bonita do Brasil que virava um tipo de vedete do país. Bikinis e meia arrastão.
  O estilo de escrita dele era aquele típico do país de então, que foi perdido e nunca mais vai voltar. Uma escrita feijoada, voce vai acrescentando ingredientes e frases temperadas. É uma escrita quente, saborosa, difícil de imitar e boa de ler. Melhor eu dar um exemplo:
" O show do Crioulo Doido tem sido a salvação da lavoura aqui no Rio. Bolado no princípio do ano para aproveitar a temporada de paulistas que surupembavam na Guanabara a espera do carnaval, era pra ficar em cartaz só fevereiro, mas veio março e abril, e o espetáculo agrada mais que banana em jaula de macaco. Começo a desconfiar que há linguiça embaixo desse feijão. "
  É o estilo figurado, a imagem no lugar da explicação, o texto feito pra quem "conhece a receita do angú". O tipo de texto que se escreve hoje irá parecer um tipo de tradução mal feita quando comparado a isto. É o estilo brasileiro, nada lusitano e nem um pouco frio. A turma do Sergio Porto, Millôr, Paulo Francis, Paulo Mendes Campos, todos tinham esse modo cheio de bossa nova de escrever. Quando ele escreve notícias, bem, voce morre de rir: " Ela era uma viúva, ou seja, chegada à um exagero homérico. E por causa disso, era apegada à uma bicharada, no caso, papagaiada. E foram seus papagaios que causaram a celeuma que invadiu a noite do Grajaú e acabou em fogo, pimenta e aracajé. Um tabuleiro da baiana completo". Creia, isso era uma notícia de jornal.
  Mulherengo, casado e pai de 3 filhas ( alguém pode me dizer porque todo mulherengo tem filhas e não filhos? ), ele morreu cedo, aos 48 em 1968. Era pra ter chegado ao ano 2000, e penso no que ele escreveria sobre Sarney, Itamar e cia. Pois foi ele quem criou o FEBEAPÁ, o Festival de Besteiras que Assolam o País. Ele pegava notícias idiotas, fatos imbecis, bem brasileiros, e os publicava. Era um sucesso absoluto. E temo que hoje não seria. Pelo fato de que há tantos idiotas que ninguém notaria a graça do absurdo. As notícias do FEBEAPÁ eram tipo deputado proibindo bikini no interior de Goiás, prefeito inaugurando estrada de ferro sem trem. Tudo fato real, nada inventado.
  Politicamente a posição de Sergio se revela nesta frase exemplar: O capitalismo é homem explorando homem. O socialismo é o contrário.
  Sobre a tropicália: São rapazes vagamente compositores.
  Niteroi, cidade onde urubu voa de costas.
  Ontem foi inverno no Rio. Agora só ano que vem.
  No Brasil as coisas acontecem, mas depois com um desmentido, deixaram de acontecer.
  Mais feio que mudança de pobre.
  Gato escaldado tem medo de água fria.
  Mulher e estrada com muita curva, ambas são perigosas.
  Amor não acaba, se transfere.
  E por aí vai...são frases e frases que entraram na mente nacional. O que me leva à uma constatação: Na atual burrice cinzenta, esquerdista e direitista, onde tudo vira slogan pobre, gente como Sergio seria detestada. Porque ele sai pela tangente, ele vê o ridículo dos dois lados, ele sente que tudo é fake. Forçado. E se não for fake, pior, é doença mental.
   Confesso que a malandragem desse Brasil, seu machismo, sua preguiça, me irritaram em certo momento. Logo me ví vendo Vinicius como um simples petista, Paulo Francis como um americanizado e Sergio Porto como um isentão. Mas acordei e vi que eles eram nada disso. Eram apenas brasileiros, ainda no berço que foi esplêndido, sem procurar minúcias de sentido preconceituoso em tudo que se fala, e exatamente por isso, de fala livre, quente e sensual. Muito da desgraça do mundo de agora passa pela linguagem em camisa de força. Mas isso é papo pra outra noite...