AS LIGAÇÕES PERIGOSAS - CHODERLOS DE LACLOS

   Houve um tempo, entre 1969 - 1980, em que as editoras lançavam livros luxuosas em bancas de jornal. Se você é mais jovem, deve pensar que estou falando dessas edições muito ruins lançadas neste século, já na agonia das editoras. Eu falo dos livros de capa dura, com títulos em ouro, páginas macias e leves, fonte clara e de bom tamanho, livros dignos de seus autores. Foi uma época maravilhosa para começar a ler, e lembro de uma nota de jornal, em que numa visita ao Brasil, um famoso autor de língua inglesa ficara espantado com os autores que eram vendidos em banca de jornal.
  Minha edição de As Ligações Perigosas é de 1979. E é digna de um livro tão delicioso. Dizem que ainda hoje, toda a psicologia amorosa do livro é válida. Penso que sim. Os movimentos do coração aqui descritos são eternos.
  Laclos foi conhecido como nobre e militar, não como escritor. Venceu batalhas e escreveu sobre elas. Passou ileso pela revolução. E como todo grande homem, ela não pertence apenas a seu tempo.
  De todo modo, Laclos esperava passar à posteridade como diplomata e general, é lembrado duzentos e cinquenta anos depois como escritor. Mas por pouco tempo. Este livro caminha a largos passos para o esquecimento.
  Esta obra contém três fatos da vida real que se tornaram tabu nestes tempos de faz de conta: Valmont seduz uma menina de 15 anos. Pedofilia. Todas as cenas de sexo são um tipo de estupro. E as mulheres se dão como servas ao homem que as seduz. Todos esses pecados são fato. É claro que me incomodam. Mas não é por não se dever escrever sobre eles que magicamente eles deixam de existir. Mas quero dizer que uma leitura mais profunda revela algo mais complexo, e bem mais atual...
  Merteuil, uma mulher, é personagem atemporal. Moderna. É uma mulher que tem prazer na cama e faz o que quer quando quer e com quem quiser. Ela é castigada ao final, mas esse castigo não convence. Laclos ama Merteuil. E ele conduz Valmont, numa campanha que parece tática militar, à uma derrota absoluta. Ciumenta, ela exige que ele seja dela, mas ele se apaixona por uma bobalhona, e Merteuil o destrói.
  Valmont é o Casanova francês, conquista pelo prazer de vencer, de dominar, de possuir. O amor não entra nessa batalha. Cada mulher é uma tropa a ser tombada. Mas ele é pego pela única que resiste. E se apaixona sem ter consciência de sua paixão. É fantástico ler como sua mente cria desculpas para sua demora, para suas exitações, para seus cuidados. Ele a ama, e não sabe que aquilo é amor. Mas Merteuil sabe, e odeia isso em Valmont. Ela se divertia com cada nova sedução dele, mas não pode perdoar o fato de ele ter a traído. No mundo dos dois todos os crimes são perdoados, menos a humanidade.
  A psicologia do livro é brilhante, a mente de Valmont e de Merteuil está viva em cada página. Mas só dos dois. Os demais personagens são apenas tipos, são uma espécie de motivo que faz com que os dois reajam. Há já uma pitada de romantismo na seduzida-culpada-sofrida Tourvel, mas o livro transborda iluminismo. Tudo é conduzido de forma racional. Quando surge a irrazão, pronto, eles afundam.
  Escrito em forma de cartas, vemos também como vivia a elite francesa por volta de 1770. As cartas eram trocadas às vezes até 3 vezes no mesmo dia. Voce remetia uma de manhã, recebia a resposta às duas da tarde, mandava outra em seguida, e ainda era lido pelo seu confidente de noite. Ele escreveria a resposta, enviaria, e de manhã voce já poderia ler outra carta. Dizem que na Inglaterra o correio era ainda mais veloz.