A IMAGEM DESCARTADA - C.S. LEWIS ( escrevemos para eternizar a vida ).

   Lewis não foi um autor de livros juvenis. Ele foi também um autor de livros infantis. Mas, assim como Tolkien foi um linguista em Oxford e Cambridge, Lewis foi um professor de literatura medieval nas duas instituições. Este é seu último livro, uma coletânea de uma série de palestras dadas em 1963.
  O objetivo do livro não é falar de literatura. É tentar aproximar o mundo medieval de nossa época. Jogar ao lixo preconceitos e mostrar como era a cultura medieval. E ele me surpreendeu muito. Ao contrário do senso comum de 2017, a idade média NÃO FOI um tempo de improviso e de falta de ordem. O homem medieval tinha um profundo amor pela ordem. Sua grande paixão era catalogar, listar, colocar tudo em uma hierarquia. Desse modo, havia a hierarquia da guerra, o catálogo do amor, o modo certo de se escrever, a maneira de ver a vida. Lewis fala da catedral, da igreja, dos anjos, dos livros, da zoologia, da geografia e do espaço sideral.
  Ao contrário do que se pensa, a Terra era considerada redonda, mas centro e periferia do Cosmos. Centro por ser o alvo das influências planetárias; periferia por ser o lugar menos elevado do Cosmos. A Terra era "morta" por não se mover, os planetas eram considerados "animais", seres viventes que influenciavam mas não dirigiam a vida do homem. ( Sim, isso é astrologia ). Talvez a imagem mais bela do livro de Lewis seja essa: O homem medieval via o espaço não como um lugar "lá fora", mas sim um lugar "lá dentro". O espaço era cheio de luz, de anjos, de planetas vivos, de estrelas animadas, de sons, de movimentos. O espaço era olhado como "o alto", o ponto mais perfeito e elevado. O espaço era festa, objetivo de vida, vida absoluta. Daí se deduz que esse homem via a morte como ilusão, a vida era a condição natural do cosmos. Cada planeta vivo em sua órbita, cada espaço escuro, noite de um dia luminoso, cada estrela reino de anjos.
  Homens letrados medievais tinham um profundo amor pelos livros. Para eles tudo que era escrito era "verdadeiro". Se Platão escreveu, mil anos antes, sobre os hermafroditas, então esses seres são uma verdade. Não importa se eles existiram ou não, por terem sido pensados e escritos, eles são parte do mundo. O mesmo se dá com a história. Heitor ou Ajax existiram pois estão na Ilíada. Eles fazem parte da história e a história existe para divertir e para ensinar. Se desconhece o conceito de informar. O que importa é ensinar e divertir.
  Esse mundo se revela, desse modo, pleno de interesse. É um mundo onde tudo importa. Cada pedra e cada animal, cada texto e cada lenda oral, tudo tem algo a ensinar e a dizer. Então o autor medieval escreve com paixão sobre aquilo que a vida é. Nossa dificuldade em os ler é o fato de acharmos que eles "perdem muito tempo" descrevendo o trivial. Esquecemos que isso ocorre porque para esses autores tudo na vida é digno de espanto. A descrição de uma fonte, de uma fada ou de uma parede é tão importante quanto a vida de um rei ou um santo. Tudo é da vida e tudo DEVE SER HOMENAGEADO. A escrita medieval é sempre uma homenagem, a vontade de eternizar o mundo na escrita. O que se escreve é o que se sabe, o que se sabe é amado.
  Lewis diz que um escritor medieval sentiria pena de um autor moderno. Acharia uma pena ele ter de inventar histórias. Isso lhe mostraria que o mundo deveria ser indigno de ser homenageado. O medieval pegava o que já existia e o descrevia. O atual imagina e descreve sua imaginação.
  Não falarei dos anjos pois esse não foi o assunto que mais me seduziu neste muito interessante livro. Termino dizendo que talvez voce tenha pensado que a biografia seria então um tipo de literatura medieval. A resposta é sim e não. Sim porque ele pega o real e vê interesse nisso. Mas essa biografia só terá esse espírito medieval se tiver por objetivo "ensinar e maravilhar". Uma biografia puramente jornalística está tão longe da idade média como o cinema de ação está próximo desse espírito.