O ROSTO DE DEUS--- ROGER SCRUTON, MEU ROSTO E O SEU.

   O rosto é aquilo que faz de nós seres distantes dos objetos. Por causa dele, de sua individualidade e de sua mutabilidade, sentimos uma insuperável distância dos animais. Bichos não têm rosto. Apenas no mundo da Disney. Ou quando os enfeitamos com nosso olhar amoroso.
  Um corpo, mesmo o corpo humano, é objeto. Olhamos para um corpo sem cabeça como olhamos para uma coisa. Esse corpo pode ser belo ou feio, grande ou pequeno, mas nada diz. Um corpo desperta apenas dois sentimentos: indiferença ou desejo de posse. O corpo sem rosto é quase o mesmo que a comida. Fome que pode ser saciada por qualquer outro alimento.
  O amor é rosto, porque ao contrário do alimento, da comida e da fome, somente aquele único rosto pode saciar meu amor. O amor individualiza a pessoa. Só ela é o que ela é. O corpo é intercambiável. O rosto jamais.
  Em nossa sociedade astros pop escondem o rosto por detrás de óculos ou numa pose "de gato morto". O rosto torna-se um vazio. Modelos de passarela usam o rosto como fantasma. E pior que tudo, na pornografia o rosto só aparece para ser humilhado, profanado, escarrado. Vivemos a ditadura do corpo e a negação do rosto. E isso se liga diretamente a negação da individualidade, da alma, do sagrado. O corpo é animal. O rosto é o mistério, e por isso, é o rosto o centro do erótico.
  Roger Scruton desenvolve com simplicidade e clareza esse argumento. Ele baseia suas ideias em pensadores: Kant, Platão, Merleau-Ponty, Hegel, Wittgeinstein...Scruton desmascara a neurociência, a psicanálise, o marxismo. Para ele todas essas "ciências" são como brinquedos, fáceis de usar e de fantasiar com elas. Elas alimentam a ilusão. Mas trazem um perigo: a transformação do homem numa "sopa química", num acidente genético, num símio que pensa que sabe, numa máquina de desejo.
  Sabemos que algo em nós não aceita a sopa e a máquina. Sentimos que o rosto é mais que o corpo. Que o eu é único, particular, ilimitado. E que esse eu só existe perante um "você", o outro rosto, também mistério e particular. Para Scruton o ato de ser humano se explica pelo EU, a identidade que não existe em nenhum animal, o ato de observar a si-mesmo. O eu vive no limite, à margem das coisas, fora do mundo, fora inclusive do corpo. O eu olha de fora, percebe, sente, decide, analisa. Fora, fora e dentro, indefinido quanto a lugar e tempo.
  Um livro de 200 páginas de um autor central de nosso tempo e que só agora, agora que a direita deixou de ser um palavrão, começa a ser lido neste Brasil véio. Bem vindo ingleses. Vocês sabem pensar.