SCHULZ E PEANUTS- DAVID MICHAELIS. QUANDO UM CARTOON CRIOU O FUTURO.

   Todo mundo em 2016 sabe que a característica mais forte de nosso tempo é a infantilidade. Somos velhos narcisistas, olhando e lambendo a vida inteira a ferida que odiamos e amamos ao mesmo tempo. Temos objetos que nos protegem da dor. Temos bonecos. Temos canções tristes. E nosso rosto, principalmente dos "meninos" é melancólico. Queremos colo. E vivemos sós, sempre sós, em nosso quintal virtual. Schulz criou esse mundo em 1950. Artistas, como dizia Shelley, são antenas que percebem as energias do mundo. ( Shelley disse isso com outras palavras ), Schulz conseguiu intuir o futuro. Ele fez isso porque ele foi um de nós antes disso ser comum. Podemos dizer que Schulz estava 50 anos adiantado.
   Ele nasceu na região mais gelada dos EUA, filhos de imigrantes noruegueses. Filho único, cresceu com um imenso sentimento de solidão. O pai era barbeiro. Trabalhava o dia todo, orgulhoso de seu trabalho. A mãe era fria, crítica, distante. Schulz se sentia um nada. Transparente. Sim, ele era Charlie Brown. Depois a mãe morre de câncer quando ele tem 20 anos. E no dia após o enterro ele pega o trem para ir lutar na segunda guerra. Acontece uma surpresa. Schulz, hiper deprimido, faz sucesso na guerra. Vira sargento e comanda um batalhão. Descem na França em 44. Invadem a Alemanha. Talvez seja o tempo mais feliz de sua vida.
   Sempre desenhou. Muito bem. Tinha amigos, mas isolado, passava o tempo desenhando. E lendo. Nunca fez faculdade. Em 1950 começa a publicar os Peanuts. Em 1955 surge o sucesso. Uma surpresa. Uma zebra. Tinha de ser.
   Cartoons em 1950 eram de heróis ou Al Capp. Já havia o quadrinho sério, crítico, mas Schulz criou o quadrinho melancólico. Ele deu voz a crianças tristes. Mostrou que a infância não era feliz. Com o tempo mostrou que nada no mundo era feliz. Sem Schulz não haveria Woody Allen. Nem as baladas folk hippies. Nem o mundo tristinho de hoje.
   No começo Charlie Brown era a tira. Depois Lucy deu nova energia à tira. Lucy era calcada na primeira esposa de Schulz. Brava, nervosa, agressiva. Patty Pimentinha foi a segunda esposa, esportiva, sonhadora, desencanada. Lucy é a mulher dos anos 60. Patty a dos anos 70. E, acima de tudo, veio Snoopy.
   Hoje nos acostumamos, mas Snoopy foi o primeiro bicho de cartoon a pensar. E ele, sozinho, capturou todo o mundo hippie. Virou mania tão grande quanto Beatles ou maconha. Ele era o sonhador, o cara que podia ser aviador, tenista, agente secreto, tudo com a força da imaginação. Snoopy é a liberdade de sonhar, de querer ser, de crer na mente e na fantasia. Foi Snoopy quem deu o salto, foi ele quem criou a moderna indústria do cartoon. De toalhas a anúncios de carros, de posters a discos, camisetas, tudo era Snoopy. Não a toa, em 1969 o módulo lunar foi batizado de Snoopy. Um desenho do beagle foi levado pelo astronauta à Lua. E o acoplamento foi chamado de abraço entre Snoopy e Charlie Brown.
   Schulz criou ainda Linus, o filósofo que tem um cobertor de segurança. ( Diz o livro que Winnicott adorava Linus e escreveu sobre ele ). E com Linus veio a TV em 1965. O especial de Natal, o dia das bruxas, o dia dos namorados. E o mundo. Peanuts se tornam mais conhecidos que Mickey. Tanto quanto a Coca-Cola, o MacDonalds e a GM. Schulz fica muito, muito rico, e sempre infeliz.
   Ele não conseguia acreditar me ser amado. Teve 5 filhos, vários netos, e mesmo assim se sentia só. Surpresa: ele não sabia lidar com crianças. Nunca se sentiu seguro com mulheres. E dava palestras sobre Deus e Jesus.
   Foram 18.000 tiras. Por 50 anos ele fez tudo sozinho. Nunca deixou um assistente o ajudar. Em 1978 viu o começo da geração de seus fãs tentar tomar seu lugar. Primeiro Garfield, que ele odiava. Depois Calvin e Haroldo, que ele adorava. Achava Garfield mal desenhado e uma má influência. Via Calvin como algo de seu universo.
  Schulz morreu em 2000. Milionário, cheio de filhos, admiradores, netos, e milhões de fãs. E morreu achando que desperdiçara a vida, que ninguém o amava, e que nunca fora um artista de verdade. Não percebeu que de todos os símbolos da América eram os Peanuts aqueles que os americanos mais queriam ser. Muita gente quer ser Elvis, James Dean ou John Wayne. Marilyn ou Mae West. Mas todos eles são inacessíveis. Ser Charlie Brown, Lucy, Linus ou mesmo Snoopy não. Todos podem ser. Todos são. Eles sempre estarão lá, no seu campo de beisebol, na escola, no acampamento. No muro se lamentando, olhando a menina ruiva, esperando a Abóbora, voando atrás do Barão Vermelho. Enquanto houver um jovem tímido, um adulto inseguro, um velho saudosista, uma mocinha raivosa, um doidão sonhador, um filósofo perdido...Peanuts é pra sempre.