O FIM DO PALCO. A VIDA DE GLENN GOULD.

Vejo na TV O Legado de Glenn Gould, um fantástico documentário sobre o gênio canadense. Se você não sabe quem ele é...
Glenn nasceu em 1932 e explodiu nos anos 50 como o jovem revolucionário que tocava Bach como ninguém jamais tocara antes. Sua filosofia era: Não faz sentido tocar como todos tocam. A música ao ser executada deve ser recriada, revivida, renovada. Mas isso, claro, dentro da partitura. Deve-se ler a obra e reler a obra. Glenn Gould trouxe à música aquilo que a literatura crítica usava desde os anos 20, A Leitura Criativa. O leitor como co-autor da obra. No caso, o músico como co-autor da obra musical.
Seu sucesso em salas de concerto foi avassalador. As pessoas iam para ver aquele jovem pianista "pirar". Gould logo sentiu que aquilo não fazia sentido. E daí nasceu seu segundo ato criativo ( que na época causou raiva em outros pianistas ): Glenn Gould defendia que a gravação em estúdio tinha MUITO mais valor que a apresentação ao vivo. Por dois motivos:
No estúdio o artista tinha controle sobre a obra. E ao mesmo tempo podia interagir com engenheiro de som e produtor. Podia incorporar o acaso, o acidental. Podia criar enquanto interpretava.
E, segundo, no estúdio o TEMPO era vencido. A gravação se eternizava, ela vencia o efêmero, ela podia respirar em novas audições.
Críticos começaram a atacar Gould. Ele mexia em dois pontos sagrados: A primazia do show ao vivo, e o respeito à interpretação consagrada. O Bach de Gould era o Bach de Gould, ou melhor, o Gould de Bach, pois seus fãs diziam que Gould ressuscitava Bach e o fazia escrever para Gould. ( Bach era o Deus de Gould. )
Antes de qualquer artista POP, Glenn Gould percebeu que o estúdio libertava o músico, lhe dava asas, era um brinquedo. As Variações Goldberg se tornaram um hit de vendas nos anos 50, mas algo não ia bem com Glenn, e este bravo documentário mostra o que.
Incrível a massa gigantesca de fotos, entrevistas, documentários e depoimentos que existem de Glenn Gould. Ele foi um superstar por toda a vida. Mas sua alma era a mais retraída possível. Ele conta que odeia a plateia, não cada um deles, mas o todo. A plateia existe como massa que presencia a intimidade do artista. Ela é invasiva. Ela quer sangue, suor, dor. E Glenn queria tão somente TOCAR. Quando ele toca o que vemos é uma profunda relação entre ele e o piano. O público fica excluído disso, não existe. E é essa indiferença que fascina o público desprezado. Ele tem a vã esperança de poder penetrar dentro do mundo de Glenn Gould. Impossível !
Glenn conta que não acredita na morte. Que isso lhe foi sempre natural, não foi algo que ele procurou. Filosofias do Aqui e Agora lhe eram repugnantes. A vida não ocorre aqui e muito menos agora. A vida é em outro ponto. Sua atitude diante da vida, hiper individualista, alheia, distante, revela sua crença. Crença que ele conta ser impossível de descrever.
Lembro que em 1982 eu comprava todos os números da Rolling Stone. Foi a leitura dessa revista, com um dicionário ao lado, que me deu a facilidade em ler o inglês. Numa última página inteira eu li a data: Glenn Gould, 1932-1982. Ele morria cercado de mistério. Afastado dos shows, solitário, se ia aos 50 anos. Cedo.
Para ele não fazia sentido tocar duas vezes a mesma obra do mesmo jeito. Se até mesmo no POP temos dificuldade em aceitar novas interpretações no palco, imagine no meio erudito... ( Esqueça o jazz. Gould não tem ligações jazzísticas. Suas releituras são dentro da partitura, como eu já disse ).
Esse documentário é brilhante! passou no canal Curta! Procure ver.