EU

Depois do romantismo, já mais de duzentos anos, não conseguimos mais ver o mundo com isenção. Temos de marcar nosso eu em tudo. É até difícil tentar entender que até os românticos falar do eu era sinal de falta de imaginação. A sinceridade em arte era deselegante e falta de espírito. Ninguém queria ser sincero ou original. A ambição era fazer melhor aquilo que todos faziam. Seguir uma tradição, e dentro dela ser o mais perfeito.
Era assim que pensava Shakespeare, Cervantes, Racine ou Voltaire. Bach, Mozart e Haydn. Fazer o melhor. Refazer com genialidade. Copiar e aperfeiçoar.
Com Beethoven, Byron, Poe, Hugo, surge o desejo de ser Único. Sinceridade e originalidade, expressar um Eu Único. Ser diferente de todos.
Desde então passou a ser elogio dizer que um artista fala a verdade, ou que ele faz algo que ninguém mais faz.
Mas vive ao lado desse impulso o espirito clássico. O fazer bem feito, o não confessional, a habilidade, a preferência pela forma.
Li no site musical uma critica antiga sobre Paul. Lá se diz que Lennon pode errar, mas ele é sincero. Paul mente, inventa, é apenas um fazedor de canções.
Essa é a mais romântica das criticas. A sinceridade como valor artístico confunde moral com estética. E o dom do belo perde valor se não for vivido e portanto, sincero.
Neste século as coisas mudaram. Sinto que o valor do bem feito, do técnico, do aparente perfeito, aumentou. Mas seremos sempre românticos. Assinaremos nosso nome em tudo. O eu estará como marca principal. Deus se foi, o Eu veio tomar seu posto. E é para ele que trabalhamos. Eu.