POEMA DO CID, EM FORMA DE PROSA POR MARIA DO SOCORRO ALMEIDA

   Escrito em 1140, o poema do Cid é o primeiro texto conhecido da península Ibérica. Então, em letras, pode-se dizer ser nosso mais antigo testemunho. Antes dele houve A Canção de Rolando na França, e o mais revelador é dizer as diferenças entre um e outro, já que ambos são sagas sobre cavaleiros medievais. Heróis fundadores de uma nação.
  Rolando é nobre. E em toda a canção só há lugar para nobres. O sangue azul manda. E o rei, Carlos Magno é Deus na Terra. Nas aventuras tudo pode acontecer. Magia acontece, donzelas morrem de amor e na verdade Rolando deseja morrer. Nada de real ou de cotidianamente vulgar acontece. Como nobre, nunca se fala em dinheiro, luta-se por honra. O inimigo é ruim, incrivelmente ruim. E o mais importante, o tempo nunca passa, na canção todos terminam como começaram. No mundo de Rolando o bom morre bom, o mal morre mal, nada muda, nada pode mudar.
  Vamos ao Cid. Ele não é nobre. Ele é um pequeno burguês que almeja ser rico. Caído em desgraça diante de seu rei, ele luta contra os inimigos para readquirir sua honra perdida. No Cid há de tudo: nobres, gente comum, judeus, árabes, reis. Inexiste a magia, magos não há. As lutas são ganhas por estratégia e por força, e o mais incrível: o Cid luta para ganhar bens, dinheiro e ouro. Ele divide os ganhos com seus soldados, todos lutando por isso, para enriquecer. O inimigo não é de todo ruim, ele pode se tornar aliado. E o tempo passa, as pessoas mudam, os lugares são descritos, o Cid envelhece, se cansa, e até mentir ele mente. A saga da Espanha é real, a francesa é nobre. A espanhola admite tudo do homem, os erros, e nunca conta com a magia. A de Rolando é irreal ao extremo. A magia salva o bem, ninguém muda jamais e um herói é perfeito. 
  Há como fazer analogias com aquilo que os dois países são hoje? Não, ambos mudaram demais em quase 10 séculos de história e de misturas. Mas algo ficou. A França continua se vendo como reino da nobreza, de finura e de perfeição. Dogmática, empedernida, protegida pelos deuses.
  Na Espanha ficou essa consciência do possível. Do relativismo, do caldo de interesses e do dinheiro como motivo central de tudo. Deus atende a quem se sacrifica. E para vencer é preciso lutar, sofrer e se precaver. Vale tudo, pois nada o ajudará. Para o espanhol o mundo é de pedra. Para a França o bem vence sempre. O corajoso, o inteligente, o belo, vencerá. O mal, irredutível, tentará, mas a França vencerá. Sempre. Para o francês o mundo é ideia.