A LUTA BRASILEIRA À LUZ DE UM CLÁSSICO DE EMILY BRONTE.

   Um resumo: Heathcliff é trazido por um proprietário de terras para o Yorkshire. Menino escuro, sujo, cigano, ele é um mestiço. O homem diz tê-lo encontrado vagando por Liverpool, mas é mentira. Óbvio que é filho ilegítimo, bastardo. Assim, o herói desta obra-prima é maldito. Mas mesmo assim passa algum tempo feliz, crescendo ao lado de Cathy, sua meia irmã. E naturalmente os dois se apaixonam. Livres, selvagens, sujos, os dois são puro instinto e também muita fantasia. 
  Tudo muda quando morre o pai. Orfão novamente, Heathcliff é jogado ao papel de servo. Sua alegria vira ressentimento. Cathy permanece fiel, mas um dia os olhos dela se abrem para uma outra vida e ela se encanta pelo vizinho da propriedade. Esse vizinho, belo, rico, educado, hiper-civilizado, representa a nova Inglaterra, o país nascido a força na esteira da industrialização. Cathy se casa com o vizinho e Heathcliff imigra para a América, país jovem, onde se pode ser tudo menos delicado. Voltará rico e doido por vingança. O final será terrível...
  Como todo grande livro, este se presta a várias leituras. Quando o li aos 15 anos, tanto tempo atrás, o que sabia eu da vida? Ele foi como uma antecipação do futuro, do amor fou-maldito que eu queria viver e padecer. Mais que tudo, o livro então me pareceu gótico, tenebroso e muito assustador. Seduziu meu coração. Li novamente aos 30 anos, na angústia de um amor dolorido e perdido. Foi um consolo e li então uma história mística, uma ode ao amor como força maior que a morte. Percebi o romantismo real, o romantismo rústico, sádico, satânico do livro. Byron ri em suas páginas. 
  Então li pela terceira vez, aos 41 anos. Entediado, procurei nele a febre dos 15 anos e não a encontrei. Em vez disso, achei uma belíssima história, a saga de um rebelde. E aterrado, constatei que o personagem de Heathcliff ficara marcado em mim como chaga. Eu antecipava as falas, o livro parecia ser parte de mim. Ele é.
  Agora, aos 50, e espero poder ler este livro aos 70, aos 90...Percebo mais uma versão. Cathy e Heathcliff representam a velha nação, aquela morta pelo progresso. Quando ela se casa com o vizinho, símbolo dos novos tempos, época do inglês como o conhecemos, reservado, distante, educado, pragmático, Heathcliff fica só. A velha Inglaterra dos tempos de Chaucer, suja, impetuosa, violenta e falastrona se isola. Vai para a América. Cathy fica rica e bonita, mas sem alma, morta em vida. 
  Sim, isso é Byron, mas agora vejo que é Shelley também. O livro prega a igualdade, a volta do impulso, do instinto, da Merry England de Shakespeare e de Marlowe. Sem Heathcliff nada parece vivo. Quando ele volta a vida não volta com ele, Bronte sabia que nada retorna como foi, retorna como contrário. Heathcliff é agora a morte. Ele destrói, ele corrompe, ele suja e conspurca. Como um hooligan, um punk, um black-block, sua ira é apenas força cega, sem alvo. Em meio aos perfumados e pálidos novos ingleses, ele é uma lembrança daquilo que eles deixaram de ser. 
  Toda nação mata sua alma ao se enriquecer. A Alemanha assassinou sua alma mística e visionária. Ela voltou como nazismo. A França destruiu a nação dos alegres camponeses, os glutões bebedores à Rabelais. O Japão fez o mesmo com o mundo dos samurais e a Escandinávia engoliu seu universo viking. Os EUA fizeram isso numa guerra civil. Mataram nas baionetas o mundo de senhores de escravos e de aventureiros individualistas. O Brasil nunca. Se um dia fizermos aquilo que a Inglaterra fez em 50 anos ( entre 1750-1800 ), nosso Heathcliff será um tipo de baiano preguiçoso, macumbeiro, lutador de capoeira e muito sexuado. Esse será nosso ser reprimido. O tal brasileiro primitivo, arcaico, nossa alma, o carioca aberto, gozador, curtidor, o paulista caipira, contador de casos, fofoqueiro...Todos terão de ser trocados pelo novo brasileiro, um frequentador da avenida Paulista apressado, um viajante com hora marcado, um homem objetivo e de pés no chão. Pouco me importa se esse novo brasileiro rico será melhor ou pior. Ele será outro. Nosso país se faz na irreconciliável luta entre os dois, luta longe de ser aplacada. Luta que como provam os outros países, jamais é completamente resolvida.
  A mais bela cena é aquela em que Cathy percebe ser Heathcliff "" ela mesma"", o famoso: - Heathcliff sou eu! O mais antigo país moderno do mundo ainda é Heathcliff. Vemos isso na obra de vários artistas atuais e nos inexplicáveis surtos de ""barbárie"" que irrompem do nada. É a emergência da sombra, como sabiamente diria Jung. É a força que nos motiva.
  Como lerei este livro depois?