Havia chovido e o céu estava sem luz. Andando pelos caminhos, entre árvores que pingavam, fazendo força para não escorregar, vi uma familia de quatis entocados no oco do pé de um tronco apodrecido. A mãe me olhava de olhos arregalados, o pelo marrom brilhando e o rabo erguido. Dois filhotes se agarravam a ela, cuidadosos. Minha reação imediata: andar com cuidado, não fazer barulho, sair de fininho para não assustar aqueles que assustados já estavam. Porque era eu que não devia estar lá. Andei, afastei-me, sumi. Aliviados, espero, eles ficaram então. Para nunca mais.
Essa cena foi no bosque do Butantã. Acho que em 1995. Em 1995 ainda vivia uma familia de quatis naquele oásis. Gente passava voando na avenida, pessoas falavam de coisas importantes, e os bichos, resistentes heróis de um tempo perdido, viviam sua vida em paz, vida que desconhece tempo, pois é a mesma desde antes de antes do começo. Quatis, voce sabe, não são vítimas do tempo e do movimento, como nós. ( Acho que as pessoas detestam bichos porque intuem que eles estão livres dessa escravidão. Acho que outras pessoas amam bichos porque sabem que eles são a experiência que consegue demonstrar a falsidade do tempo ).
Nasci em 1963. Minha casa, em frente ao Morumbi sem muros e donos, ficava a uma caminhada de 30 minutos do bosque. Junto a minha casa eu encontrei bicho-preguiça e gambá. E milhares de sapos, cobras e escorpiões. Caranguejos nos lagos. E penso na felicidade disso tudo. Falo com genuino orgulho: nasci em 1963. No Morumbi. No mato. No que era "o fim do mundo". Minha casa tinha tartaruga, patos, galinhas, cachorrros e coelhos. Vi pinto sair do ovo. Vi coelha parir. Tripas de galinha ainda quentes de vida. E ia pra rua atrapalhar as caçadas de meus primos. Espantava os passarinhos e meu primo ficava doido. Isso me dá mais orgulho que diploma, carro novo, namorada bonita, bíceps ou texto escrito. Tive tudo isso. O pato nascendo foi melhor.
Ao mesmo tempo em que eu olhava admirado a vida dos cupinzais e a cobra-cega sumir no chão, um lagarto-gigante morava entre as folhas podres e os tocos de pau do bosque. Ele esticava sua lingua viscosa e sentia o cheiro dos ovos e vermes que ia comer. O quati via seu rastro. O macaco via seu corpo. O tatú o evitava. Eu lá sobrava. Esse lagarto, vida que não acaba, viveu anos e anos na paz de sombras e de chuvaradas. Um tempo foi avistado por uma menina loura que pensou ter exagerado na bebida. Depois uma criança reteve sua imagem para nunca mais esquecer. E sumiu. Seguiu o rastro do quati. Sua vida de doce ignorância do que fosse tempo foi embora submersa pelo vingativo senhor dos homens. Esquecimento impera.
Mas eu lembro. Alguém mais lembra. Da inocência dos seres que vivem sem contar a vida. Que reagem ao redor tendo a certeza sempre. Seres que viviam no que sempre lhes foi certo, perfeito, suficiente e eterno.
Nós, homens, somos destruidores de eternidades.
Saudades deles, pois. Jogamos fora para depois sentir a falta. Perdemos primeiro, depois queremos.
Não voltarão. 1963 não vai voltar.
Que a menina loura guarde seu lagarto para a vida afora. Sabendo que ele foi um não-tempo possível.
E que os quatis tenham desaparecido sem medo. Dormindo naturalmente no reflexo das manhãs que nunca acabavam.
A felicidade mora nessa união. Bicho-homem, vida-espaço livre, ser e fazer, querer e poder. Estar e não pensar muito.
Esta escrita é a árida procura dos rastros.
ps: É claro que o bosque é o do Morumbi. Bosque do Butantã não existe. Sorry.