LEMBRANÇAS DA DITADURA


   Fui uma criança nascida e criada na ditadura. Carrego comigo o conflito entre aquilo que me foi ensinado e aquilo que de fato é. Eu tinha uma professora que nos contava que o céu do Brasil era mais azul que de qualquer outro país. Que nossa água era mais pura e nossa gente a mais feliz. Esse era um pensamento dominante, éramos educados para crer que o brasileiro era o rei da felicidade. Devíamos ser felizes por termos tido a sorte de nascer brasileiros.
   Tínhamos a maior estrada do mundo, a maior ponte, a maior hidrelétrica e o maior estádio de futebol. Não havia terremoto, furacão e nem guerras. Além de felizes, a gente era bonzinho, acolhedor e belamente religiosos. Doce Brasil. Até nossos ladrões eram boa gente, malandros sorridentes.
   Íamos mal nas Olimpíadas porque não ligávamos pra elas. E no futebol, na fórmula 1 e no boxe só perdíamos se fosse roubado. Ninguém sabia jogar bola, só a gente. Todo europeu era um perna de pau. Em 74 só não ganhamos pela falta de organização e em 78 por ter sido um roubo ( foi, mas não jogamos nada ). Éder Jofre perdeu o título roubado, claro. Era o mundo contra o Brasil. Aliás, é a característica principal de toda ditadura, crer que o mundo é contra a gente. Hoje sei que o mundo não tava nem aí pra gente, mas os milicos queriam pensar ser protagonistas.
   Já na democracia, lembro da nóias de Galvão Bueno para justificar nossas derrotas. Um esquema anti-Senna e outro anti-seleção. Galvão tem a mente ainda em 1972.
   Para nós, crianças em 1973, a Europa era aquilo que diziam pra gente, um lugar de gente pornográfica, terrorista e muito pobre. Todos os meus amigos achavam que era perigoso andar em Roma ou em Londres. Que bombas explodiam na rua, nos carros, nas casas. Que terroristas comunistas raptavam donas de casa a toda hora. E o pior, era a Europa o reino de gente triste e pobre. Continente sem grandes pontes, grandes hidrelétricas e grandes rios.
   Mas havia a América!!! A América era a excessão. Nosso irmão mais velho e mais rico, eram os EUA aquilo que seríamos lá por 1980. País de Elvis, Sinatra e de Jerry Lewis. Tínhamos a certeza de que a vida lá era uma mistura de Jeannie é um Gênio com A Feiticeira. Os americanos eram bonitos e as americanas sabiam cantar de dançar. Gene Kelly e Doris Day.
   Toda essa fantasia fazia com que os pobres, mais de 90% do Brasil, vivesse num tipo de torpor pseudo-satisfeito. Um saco de feijão e uma dúzia de bananas já fazia festa. Quem era pobre morria pobre. Quem era rico morria rico. E a pequena classe média vivia cercada pelos pobres mirando os muito distantes ricos. O crime era menor porque a ambição era ínfima. Voce era o que era, e fim.
   A ditadura aqui sempre foi estranha. Se censurava tudo. Nas revistas masculinas não se podia mostrar o bico de um seio. Nos filmes não se podia falar a palavra sindicato ou revolução. Mas as crianças viam os Secos e Molhados na Tv. Era esquisito pacas.
   Comecei a cair na real na puberdade. Eu queria ver revista de mulher pelada e ficava puto porque elas nada mostravam. Eu ficava maluco com filmes cortados. Quando o casal ia pra cama, corte! Foi então que notei que a revolução sexual dos anos 60 não chegara por aqui. Discutia com meus amigos. Eles tinham a certeza de que na Europa não havia sexo. Que estavam muito atrasados. Que o Brasil era muito mais livre. Não percebiam os cortes nos filmes.
   Acho que a coisa começou a mudar no carnaval. Transmitiam bailes e desfiles e foi neles que vi uma mulher de seios nús pela primeira vez. Era muita safadeza nos desfiles da Beija-Flor e o carnaval era uma ilha de liberdade sexual em meio a uma Tv hiper-pudica.
   Quando a ditadura fez água, com Figueiredo, a coisa pegou. Em poucos meses tivemos a alegria da liberdade misturada com o bodeante cair na real. O mundo entrou no país.
   Os outros eram mais ricos que nós. Eles também sabiam rir. A América não era uma irmã. As grandes obras nacionais eram mal feitas. Pior de tudo: O Brasil não era o protagonista.
   Lembro disso tudo em meio aos protestos. Penso que a internet dificulta a ditadura dos costumes, o jogo ilusionista do ditador. Mas ela nada pode contra a ditadura econômica.
   Penso o quanto os governos do PT usam o jogo da ditadura para vender a ideia de uma nação grande, rica e protagonista. E o quanto eles usam a nóia do Mundo contra Nós.
   Sim, eu fui feliz em 1973. Por ser uma criança vivendo num mundo de fantasia. Era feliz num país que nada produzia e nada tinha a oferecer. Então a gente nada pedia.
   Simples assim. Aliás, nada mais simples que uma ditadura.
   Espero que nunca retorne.
   Amém.