NA TRILHA DE ADÃO- THOR HEYERDAHL, MEMÓRIAS DE UM FILÓSOFO DA AVENTURA

   Thor foi feliz. Claro, ele foi humano, viveu alguns momentos ruins. Mas foi feliz, sempre feliz.
   Nasceu na Noruega, no começo do século XX e faleceu no começo do XXI. Filho único de uma familia da classe média alta, aprendeu a ser só e passou a infância entre a super-proteção dos pais e as escapadas para o mato. Logo uma ideia se formou na mente de Thor: Tornar-se um homem. Colocar-se a prova e vencer. E então, desde cedo, ele escapava. Escalava montanhas, acampava de noite nas piores tempestades de neve, observava os bichos. Mas atenção! Estamos falando de 1925, 1930, esportes radicais não existiam. Acampar no mato, sózinho, em um iglú, era um ato muito excêntrico.
   Mulheres só na faculdade. Thor cursa zoologia. Mas estuda também geografia, antropologia, história. Sua vida foi uma luta contra o saber acadêmico, o saber muito sobre muito pouco. Casou-se três vezes, o primeiro foi com Liv, a moça que foi com ele viver na Polinésia.
   Não havia um só europeu na Polinésia de então. Ele e a esposa viveram nús, comendo cocos e peixe, sem comunicação com o mundo, sem remédios, sem rádio. Sair da ilha só era possível uma vez ao ano. O paraíso? Não, claro que não. Insetos e muita chuva. Se nunca foi um paraíso, o que Thor buscava lá?
   Ele jamais duvida: Deus está de seu lado. É impressionante como Thor tem sempre a certeza de que tudo vai dar certo e de que o paraíso vive dentro de cada um de nós. Junto com o inferno. Thor vai á Polinésia porque sua voz interior manda que vá. Ele abomina tudo que é falso, que cheira a não-vida, vai viajar como quem busca a vida. E vive. Muito. E feliz.
   Mesmo ao passar fome. No kaos da segunda-guerra ele e a segunda esposa estão em New York, loucos de fome, sem amigos e sem trabalho. Esse um momento de dor, mas nunca de dúvida. Assim como na Noruega, quando ele luta contra os nazis ou no Canadá, quando ele trabalha em fábrica quimica e conhece a destruição do progresso.
   Thor se torna famoso em 1947, com sua viagem, o Kon-Tiki. Mas para sua surpresa é terrivelmente atacado. A comunidade científica não aceita o que ele fez. Dizem que a viagem foi uma farsa, dizem que ela nada prova, o chamam de "simples marinheiro". Thor fica surpreso e logo percebe a cegueira da comunidade científica. Eles são incapazes de aceitar algo vindo de fora de seu meio. Thor nunca foi um marinheiro, era um cientista, um estudioso, seu "pecado" era o de ir para fora, botar a mão na massa. Marinheiro nunca foi. Nada sabia de mar, aliás, nem nadar sabia.
   Aos poucos ele dobra as resistências e empreende outros projetos. Viaja da África a Tenerife em barco de papiro, visita a Amazônia, não pára de dar conferências. Seus livros vendem muito, seu documentário ganha um Oscar. Casa-se pela terceira vez.
   Este livro não é seu relato sobre o Kon-Tiki. É uma coleção de lembranças escritas na década de 90. Ele recorda seu cão Kazan, com o qual ele arriscava a vida em expedições a geleiras e montanhas no inverno. A mãe, uma atéia que amava a verdade e lhe deu o senso de honestidade. O pai, religioso e sensível, que lhe dava a liberdade de se ir, de tentar, de prosseguir sempre. E ele como criança, um menino calado, que não conseguia ficar entre muros, que via o sagrado em cada grão de poeira e que desde sempre indagava o que era o tempo, a vida, o homem, a história. Ele foi sempre feliz porque conseguiu conciliar dentro de si a fé em Deus, Adão, no Dilúvio, e ao mesmo tempo a crença em Darwin, na razão e na paz como alvo possível. Ele não via um fato como algo que exclui outro fato, ele via todo fato como possível confirmação de um outro fato. Interligava conhecimentos, nada jogava fora. Dessa forma ele abria ouvidos para toda narrativa ancestral e abria os olhos para os textos eruditos também. Tudo lhe interessava e tudo era parte da verdade. Foi um sábio a moda antiga, nunca um dogmático especialista, antes um homem que pesquisa tudo e nada descarta. Daí sua felicidade.
   Thor nunca teve uma casa. Ele acampava em hotéis, em cabanas, em casas também. Sua alegria era a de não precisar de nada. E de ter tudo.
   Thor foi um dos últimos heróis possíveis.