AQUILO QUE ME MANTÉM DE PÉ. AQUILO QUE CREIO. REI ARTUR E SEUS CAVALEIROS- TOMAS MALORY, O NASCIMENTO DO HERÓI QUE CONHECEMOS

   Após mergulhar nessas teorias e crenças, mundo do diabo, mundo de anjos maus, homens-canibais, humanismo reduzido a pura questão celular, repenso e reavalio aquilo que creio e percebo em meio a tudo isso o que fica, firme, para mim.
   Se a matéria é feita por Mefisto, nossa alma não é. E sei que todo o mal nasce sempre quando as aparências tomam posse das certezas. Tudo o que nasce nas profundezas da alma é verdade. Tudo. Todo o resto é material perecível, mutável e sem valor.
   Se os homens são canibais e apenas a religião consegue reprimir esse impulso em nós, bem, que essa repressão se torne cada vez mais forte e que se transforme em magnífico delirio. Chamarei esse delirio de canção. Faz muito tempo que sei que a repressão às vezes é necessária. Mais que isso, nos define.
   Se todo humanismo irá um dia ser esquecido, e tudo irá se reduzir a um conjunto de células ( há uma lógica nisso pois a história é redução. De filhos de deuses nos tornamos filhos da evolução, de centro da criação somos hoje dejetos e acidente ), se o homem do futuro é simples ser-vivo em funcionamento, cabe a nosso tempo dar vida potente ao que resta do humanismo. Reafirmar os valores do homem. Homem fora da natureza e da biologia. Homem que cria e é cultura.
   Relendo Artur.
   A estupenda revolução que ocorreu nos séculos IX e X. O nascimento do homem como herói. Mas não mais o herói grego. Odisseu era vitima dos deuses. O novo herói é dono de seu caminho. Ele vai atrás das aventuras, elas não são ciladas. Seu objetivo não é o dinheiro, não é a posse de uma dama, não é o troféu. Seu objetivo é ser o mais perfeito cavaleiro. E o que é essa perfeição?
   Perfeição que dominará nossos sonhos por mil anos e que entrará em declinio só agora. Perfeição que vem do valor de nascença. O homem é o lugar onde ele nasce. Defenderá seu nome. Elegerá uma dama e fará dela a rainha de suas ações. Atenção: não existe o fim em casamento. Esse amor, que será cantado e chorado é puro ideal. O cavaleiro sabe que ele não deverá jamais se realizar. E nisso eles foram bem mais sábios que nós. Sabiam que sua realização, sua queda ao mundo real, seria seu fim. O amor é ideal.
   Um cavaleiro deveria ser sempre sincero e só combater quem fosse de sua altura. Defender os fracos e todas as mulheres, ser poeta e músico, saber caçar e viver sempre em movimento. Embrenhar-se em florestas, procurar oponentes, lutar. Manter a palavra, ser fiel, nunca se render.
   Desse modelo vieram todos os nossos heróis. Dos cowboys aos detetives, dos Batmans e Wolverines aos heróis do espaço e poetas estradeiros. Todos os nossos modelos, modelos que começam a morrer mais ou menos de 1970 pra cá, foram criados e nascidos nesse ciclo Bretão, mitos da Bretanha francesa.
   Lógico que poucos foram heróis na vida real. Não é esse seu valor. O que importa é a força que criou esse mito. Um mito heróico que é em tudo opósto ao nosso mito de hoje, que talvez seja o "homem bem sucedido". Poucos são bem sucedidos, mas é esse o modelo que ficará de nosso tempo. Os povos do futuro nos verão idealmente como "homem bem sucedido".
   Essas imagens, Lancelot apaixonado pela esposa do Rei e sofrendo calado; Tristão vivendo isolado e anônimo, enlouquecendo de amor e perdendo a memória; Merlin e sua magia, enterrado vivo numa rocha; Percival e sua inocência, puro de coração e de corpo, errando pelo mundo atrás do Santo Graal, são todas imagens que segundo Jung habitam o inconsciente ocidental, nos dão criação, medos, desejos, doenças e motivação de viver. Todos eles renascem em nossos sonhos, nos filmes que vemos, nas músicas que cantamos, nos livros que lemos. Morgana e seu ódio invejoso, Isolda e seu amor que foge, A Dama do Lago protegendo e inspirando Artur, Guinevere e o triângulo amoroso com Artur e Lancelot. Os gigantes, os combates, os torneios. O confronto dos campeões, as mortes honradas, o perdão.
   O melhor de nosso mundo está todo lá. Tudo o que vale a pena nasce nesse momento. E é nisso que acredito, é isso que me dá toda a força e a minha vida é reafirmação daquele mundo.
   Todo o resto não me interessa.