A RELÍQUIA- EÇA DE QUEIRÓS, A VERDADE SE CONSTRÓI NA INSISTÊNCIA

   A moral da história é: em se tratando de igreja como de ciência, uma coisa se torna "a verdade" quando é repetida a exaustão. É a tal "coragem de persistir", que nada tem a ver com a verdade. Entenda que falo aqui de igreja e não de religião e falo da ciência dos "ismos" e não da simples verificação empírica. A persistência, sem jamais dar chance a dúvida, fez a pseudo-verdade de centenas de teorias cientificas e de crenças misticas. De existencialismo a behaviorismo, de cientologia a feng-shui, de marxismo a psicanálise, de astrologia a angeologia, tudo depende de fé inabalável, de se crer naquilo, repetir como um mantra e o principal, jamais demonstrar dúvida perante o descrente. O "herói" deste livro, obra-prima cômica, se deixa duvidar por um momento. Perde tudo.
   Eça escreveu A Reliquia no fim da década de 1880, e ele abandona o realismo de sua primeira fase. Aqui temos um romance romanesco. Uma mistura de Voltaire com Stevenson ( como notou Bloom ), uma sátira sobre a alma portuguesa e que consequentemente diz muito da alma do Brasil. Portugal sofre o mito do gigante que se tornou pequeno, do reino senhor dos mares que perdeu mar e senhoria. O Brasil sofre do mito do país do futuro e do gigante adormecido. É surpreendente ver neste livro que um dos males de Portugal é mania do brasileiro. A febre pelo "rabo de saia". Vamos ao livro.
  Teodoro Raposo é criado por tia milionária. Essa tia é uma beata extremada. Tem tanto asco das "relaxações" que fala do grande erro de Deus: ter criado os dois sexos. Ela recebe padres para jantar e deixará sua fortuna para a igreja. Mas nosso Teodoro não aceita isso. E ansiando pela morte da velha, finge ser mais beato que a beata. Ele tem apenas uma certeza na vida, adora as mulheres e vive caindo na tentação. É revelador que toda vez que Teodoro vai a igreja, pensa em Deus ou em algum santo, logo uma imagem de sexo lhe vem a mente. Ele chega a ver a amante nua, na cruz cristã.
  Ele é traído e humilhado pela amante e parte para Jerusalém. Vai com a intenção de impressionar a tia. Conhece Topsius, um alemão que estuda ruinas e na viagem se envolve com Mary, uma inglesa. Tudo que Teodoro vê é expectativa de experiência sexual. Seja Egito, Palestina ou num navio ao mar, o que o move é o dinheiro, dinheiro que lhe trará mulheres e luxúria.
  Então Eça nos surpreende. O herói dorme no deserto, naquela imunda Jerusalém, e tem um sonho onde ele "acorda". Está no ano zero, e vê com seus olhos, o julgamento e a morte na cruz de Jesus Cristo. Eça de Queirós era ateu. Mas o modo como ele descreve aquilo tudo é emocionante. Ele vê Jesus como um louco sublime, um homem que ousou desafiar o poder dos juizes hebreus, dos mercadores palestinos e das autoridades romanas. Eça descreve seu sofrimento na cruz como o sofrimento de um inocente, de um homem bom. Teodoro se sente despersonalizar, sente que ali está o marco zero da história, a gênese de toda uma civilização. Quando acorda ele tem o alivio da volta de sua personalidade. Lhe volta o tédio e o desprezo por Jerusalém. Fabrica lembranças "sagradas" para impressionar a tia e volta a Portugal.
   O fim do livro é de grande ironia. Teodoro perde a herança e depois vence ao se casar com mulher rica e feia. E a conclusão é de que a mentira é o melhor caminho. Teodoro se arrepende...de não ter insistido na mentira. Não ter tido a tal "coragem em insistir".
   Eça mostra Portugal como um país de religião falsa, hipócrita, fadada a tristeza e a mesquinhez. Ao mesmo tempo, é uma nação onde só se pensa nas mulheres da vida, nas amantes, nos bares de putas. A vida se faz nessa maré: padres comilões e ambiciosos e camas luxuosas e cheirosas. O povaréu pobre copia essa bufonaria em termos menores. Padres e putas, viúvas beatas e moços interesseiros. Todos esses tipos vivendo em função de uma só ideia, de um só objetivo, cegos a vida em sua complexidade e inaptos para qualquer tipo de mudança. Teodoro é esperto, mas é incapaz de se auto-analisar. Ele jamais pensa em seus valores, nunca se observa, não tem dúvida alguma daquilo que é e daquilo que faz.
   Livro de humor terrível, cheio de imagens grotescas, Eça de Queiros se mostra aqui em toda sua genialidade. Inesquecível.