MUITO TEMPO ATRÁS O MUNDO ERA ASSIM...

    Ser triste era um charme. Já era uma tristeza fake, mas olhos lacrimejantes e poucas palavras eram sinal de beleza. Bowie, que era um tipo de juiz de elegância, dizia que a beleza só era possível onde morasse a tristeza. Dizia, porque ele faz agora o que, inteligente que é, deve fazer: sair de cena; e em época de hiper-exposição, faz-se o silêncio... Mas voltando a meu tema...
    As pessoas modernas de então tinham de ser deprimidas e tinham de fazer terapia. Todo mundo frequentava analistas. E todo mundo tinha mapa astral. Essas pessoas nunca saiam em fins de semana. E essa é uma das mudanças que mais me assombram: as pessoas modernas saem sexta e sábado!!!! Se saía às terças, quartas e quintas. Os outros dias eram para a ralé. Tanto que nos fins de semana tudo era mais barato. A gente dava risada de quem marcava saídas sexta-feira.
   Amigos marcavam pré-balada em casa. Voce ia à casa de alguém e bebia lá. Ou fazia outras coisas. Ás vezes até terminava de se produzir. Mesmo heteros davam uma importância imensa ao visual. Armani, St.Laurent, Yes Brazil, Forum, Soft Machine ( era minha favorita ), Ellus, e um monte de marcas "do Rio" que sumiram. Ah...esqueci da Benetton!!! Então voce ia na casa do amigo e ouvia música ( Bowie ) enquanto bebia e se aquecia para a noite. Aliás, não se usava a péssima palavra "balada". Balada era tomar droga em grupo ou ir viajar à praia.
   Se ia muito à casa de amigos. Conversava-se muito. Conversas de seis horas eram coisa banal. E o assunto era sempre o eu emocional. Qual a minha praia, pra que eu existo, onde devo me achar. Como eu disse, ser triste era chique. A cocaina mandava e era considerada droga de rico, coisa hollywoodiana. O povão ia de maconha e cola. Ninguém tinha 200 amigos virtuais, então eram uns 20 amigos do peito. Se telefonava muito, onde se conversava por horas e em natáis e aniversários se enviava cartões. Eu mandava flores para meninas. Com cartões românticos. Sinceros. Espero que alguém os tenha guardado.
   Um disco era para se ouvir inteiro, lado um e lado dois. Lia-se a ficha técnica. O nome do engenheiro de som era muito importante. A música era levada muito a sério. Ao tirar o celofane do vinil voce tinha a sensação de estar desvirginando uma sacerdotisa grega. O cheiro de disco novo era como incenso. O lançamento de novo clip era cerimônia compartilhada com os 20 amigos.
   Na minha faculdade tinha gente que via espiritos. Tinha gente que havia morado no mato sem comunicação com ninguém. Tinha gente que tomava LSD para ver um deus. Todo mundo era meio louco. Não a loucura do toc ou da deprê, era a loucura da esquizo. A cidade parecia um manicômio.
   Alguns amigos usavam cabelo roxo e outros calças rosa com sapatos azuis e vermelhos. Isso não seria nada demais não fosse o fato de que eles transformavam esse visual em politica. A ideia de um novo mundo.
   Os criticos de cinema não falavam de filmes pop. Batman ou De Volta Para o Futuro eram ignorados. Critico falava de arte, bilheteria ou fofocas de ator não interessavam. Criticos eram metidos, arrogantes e adoravam fazer um escândalo. Metiam o pau sem dó. E chamavam de deuses a quem amassem. Os sentimentos eram exaltados.
   As casas noturnas tinham garçon. E ninguém pagaria o mico de fazer fila. Fila!!!! Ora, que humilhação!!! Em aviões, cinemas ou boates, voce tinha a mordomia assegurada. Espaço e alguém te servindo, isso era a mordomia.
   As profissões mais IN: arquiteto, artista plástico, fotógrafo e cineasta. Jogador de futebol NÂO era levado a sério, assim como artista de TV ou cantor popular. Ensaio de moda com jogador ou noveleiro, nem em sonho. Sim, foi tempo de extremo esnobismo. Asfixiante esnobismo. Regras de beleza e de charme a granel.
   Comprava-se muito menos livro, se lia mais. Escrevia-se menos, sabia-se escrever melhor. Havia vazio para pensar e para aprender. Se os cinco canais de TV não tivessem nada pra ver, se o cinema não exibisse um filme bom, voce era obrigado a não fazer nada. Então voce lia, ou ia à casa de um amigo, dava um telefonema, escrevia, pensava. Hoje voce se perde em 200 canais e nada vê. Ou fica zumbindo com a cara enfiada no Facebook.
   O mundo mudou muito e não mudou nada. Transava-se na mesma quantidade, mas era mais no carro e menos no motel. E não se usava camisinha. Voce ia numa corrida só, sem parada para higiene. Se beijava menos, se amava igual. Como não existia celular, se sentia mais saudade, e como não se podia mandar torpedo, se vigiava menos. Ficava-se ligado em pensamento, em sonho e em planos. Ainda havia a possibilidade da incomunicação. As suspeitas eram menores, pois quanto mais se está ligado mais se exige prontidão.
   Não se dava tanto valor a animais de estimação. Para se achar um petshop era uma corrida. Estacionava-se na rua e se passeava na rua. A molecada ia pra lanchonetes de rua aos domingos de tarde. E havia a experiência de sair de um filme e se cair na rua. O choque do filme com a escuridão da rua de noite, as sombras, o silêncio, o carro distante. Sorvete na rua, hot-dog na rua, encontro na rua. Cheguei a transar na rua. E jogar bola nos jardins, de madrugada, bêbado, na rua.
   Eu não vivi completamente esse tempo e acho que ninguém viveu. Todos estavam envolvidos com um eu tão profundo que não podiam ver a vida fora. Essa década é pra mim uma nebulosa triste, fria, cheia de amores imensos, sofridos, e de ícones heróicos, impossíveis. Não sei se hoje é pior. É mais futil, sem dúvida. E muito menos perigoso. Talvez a chave seja a de que em 1982 a adolescência mandava. Hoje somos crianças bem alimentadas, saudáveis e felizes.
   Adolescentes são egocentricos, são vaidosos, acham que sabem tudo e se preocupam com seu ser todo o tempo. Experimentam, tentam matar o mundo antigo, são ansiosos. Amam demais, choram demais e vivem tristes. E riem como malucos. Crianças dormem. E sonham. E brincam de ser adulto. Repetem tudo aquilo que os pais fazem. Sem saber o que aquilo significa.
   Acho que essa é a diferença. Adolescentes brincam de descobrir. Crianças descobrem a brincadeira.,